A paixão minha, Eduardo, e da Daiane por literatura infantojuvenil continua em nossas leituras habituais, mas a fase de escrever sobre estes livros, da qual esse blog foi o principal veículo, chegou a seu fim, ou pelo menos a um ponto de férias. Outros são os projetos a que nos dedicaremos. Quem sabe se o blog não verá novas postagens? Se vier, será a seu tempo.
O Eduardo segue nos blogs Bibliófilo Pobre e Limericando, este último com certa ligação a este Daki-Dali, uma vez que trata especificamente de poesia nonsense, que é um gênero presente na literatura infantojuvenil.
Abraços a todos e boas leituras! :)
Daki-Dali
Sejam Bem-vindos! Nesse blog, apresentamos textos sobre a cena cultural, literatura, poesia, literatura infantojuvenil e outros temas de nosso interesse.
quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012
sábado, 26 de março de 2011
Um livro de convites
PROLIJ LANÇA OBRA QUE SERVE COMO GUIA À INCURSÃO À LEITURA INFANTOJUVENIL
Todo leitor que se preze é naturalmente um curioso. Uma capa bonita, um primeiro capítulo bem escrito, a indicação do livro feita por algum amigo ou um título curioso: basta um suave convite para que o leitor aceite a proposta de certo livro e mergulhe ansiosamente em sua narrativa. “Livro dos Livros”, o nome do mais novo lançamento da Editora Univille, composto por resenhas de acadêmicos e pesquisadores do Programa Institucional de Literatura Infantojuvenil (Prolij), é um livro de convites. Um livro que nos convida a mergulhar dentro do universo literário, indicado especialmente àqueles eternos curiosos, sempre dispostos a conhecerem novas obras e autores.
As resenhas do livro estão divididas em cinco partes: livros infantis, infantojuvenis, juvenis, narrativas visuais e teóricas sobre literatura infantojuvenil e o processo de formação de leitores. Eis um livro múltiplo, que vem para agradar a vários públicos: contadores de histórias têm aqui diversas sugestões para seu repertório, enquanto os pais encontram livros de qualidade garantida para ler com seus filhos, pois são obras escolhidas e recomendadas pela experiente e atenta equipe do Prolij.
O livro também é uma contribuição para todos aqueles interessados em pesquisar os caminhos da literatura infantojuvenil, afinal, quantos convites à reflexão sobre a leitura e a literatura não emergem dessas 84 resenhas? E, claro, por falar sobre essa coisa apaixonante chamada literatura, o “Livro dos livros” vai agradar a qualquer um que goste de histórias. A qualquer curioso.
_ _ _ _ _
Espelho
(por Maria Lúcia – *Pesquisadora voluntária do Prolij e mestranda em patrimônio cultural e sociedade)
Espelho é um exemplo de livro que não necessita de floreios na imagem para refletir grandes questões. Por meio de dois elementos em praticamente todo o livro, Suzi Lee, premiada autora da Coreia do Sul, aborda assuntos referentes às relações entre pessoas, ao autoconhecimento, à solidão, à tolerância e talvez sobre muitas outras coisas. Afinal, uma narrativa visual quanto mais aberta for, mais rica será. O enredo simples conta o momento quando a personagem, uma menina, desenhada pela autora, de vestido amarelo e traços soltos a carvão ou material similar, encontra seu reflexo em um espelho. O ambiente vazio, traduzido pelo branco das páginas, confere uma sensação de espaço potencializado pelo desenho posto na base da página, ora nas bordas laterais, ora na junção das páginas espelhadas. A representação da personagem e seu reflexo no espelho aliada às suas ações nos levam a percursos interpretativos distintos, tornando cada virada de página uma surpresa. “Espelho” nos mostra que não é na igualdade e na concordância que se constroem relações verdadeiras, mas na diferença e na discordância, é partindo delas que visualizaremos nosso real reflexo.
Título “Espelho”
Autora (Suzi Lee)
Editora CosacNaify
Ano 2009
___________________
O som das cores
(por Alencar Schueroff, Professor do Persona e pesquisador voluntário do Prolij).
O livro é simples, com enredo e linguagem acessíveis a quase todo tipo de leitor. Porém, com uma reflexão mais aprofundada, podem surgir perguntas, como: por que há frases do tipo “É perto do meio-dia, dizem as sombras”? Respondendo de forma paradoxalmente objetiva, dir-se-ia que isso é o que chamamos de literatura. As coisas ditas e, ao mesmo tempo, não ditas, que agitam nossa alma.
A história trata da vida sofrida de Rosálio e Irene. Ele, um pedreiro analfabeto que carrega consigo uma caixa cheia de livros. Ela, uma prostituta doente em fim de carreira. A fusão entre o cimento e a guará vermelha ferida vai dando origem a uma explosão de cores que toma conta da vida tão incolor de ambos. Eles interagem e se complementam, à medida que Rosálio aprende as primeiras letras com Irene que, em contrapartida, ouve maravilhada a fantástica história da vida dele.
Irene ainda acumula mais duas funções: lê para seu companheiro os livros da caixa e coloca no papel as narrativas autobiográficas que ele conta. O destaque do livro é a musicalidade. As palavras são minuciosamente escolhidas e colocadas.
Título
“O Voo da Guará Vermelha”
Autora Maria Valéria Rezende
Editora Alfaguara
Número de Páginas 184
Ano 2005
_ _ _ _ _
Publicado no Jornal ANOTÍCIA de 20 de março. AQUI.
Escrito por Daiane da Silva e Eduardo Silveira, Acadêmicos do 4° ano do Curso de Letras da UNIVILLE.
sábado, 13 de novembro de 2010
Revisitação da infância
Escrito e ilustrado por May Shuravel, este "Areia da grossa, areia da fina, me faça ficar pequenina" é um dos muitos livros infantojuvenis que tem a infância como tema. Aqui a menina Lúcia, hospedada na casa de sua amarga tia Ursula, acaba fazendo descobertas. Depois de uma peraltice dela e do irmão, Lucia refugia-se no escritório, cômodo secreto de sua tia. Lá descobre brinquedos e livros esquecidos... dela, a sua tia Úrsula, quando criança. Esse cômodo fechado, trancafiado, nada mais é que uma metáfora para a infância de sua tia. Por ser feita de amargas lembranças, a tia decidiu esquecer tudo, enterrar essa fase de sua vida. A entrada de Lúcia areja o espaço, e por conseguinte, esclarece as atitudes amargas da tia. Esse livro, apesar de muito simples, mexeu comigo. Pelo tema, a infância. Tenho certeza que livros como esse, sobre o passar do tempo, sobre recordaçoes da infância calam fundo em quase todo adulto. As crianças gostam da história, é claro, mas a veem de outro jeito. Essa história é um objeto do qual, dependendo da posição (idade) do observador (leitor), é vista de um jeito. É nos adultos, que olham pro seu passado ao ler uma história como a de Lucia e Úrsula, que o livro causa mais comoção. Areia da grossa, areia da fina...
terça-feira, 19 de outubro de 2010
Duas árvores generosas
Eis dois ótimos livros que se aproximam ao colocar árvores como protagonistas, relacionando-se com os homens. Dando-lhe sentimentos e ideias, Oswaldo França Júnior, de "A árvore que pensava", e Shel Silverstein, estadunidense autor d' "Árvore generosa", dão movimentos à esta espécia marcada pela inércia. O livro de Shel foi publicado na década de 60, e o de Oswaldo na década de 80. A preocupação com a devastação ambiental é cada vez maior, mas certamente já rondava as cabeças pensantes desses tempos. Mas seria esta a intenção dos dois autores?
O livro de Oswaldo, que é ilustrado pela artista Angela Lago, pode ser considerado uma curta fábula. Conta a história de uma arvore - que pensava muito - e que um dia foi transportada para a praça no centro de uma cidade. Animada, faz de tudo para adaptar-se a esse novo meio e conquistar seus habitantes. Aliás, decisivas para a compreensão do drama da árvore, são as ilustrações de Lago. Exatamente como na capa (vide foto), as ilustrações ocupam um pequeno quadrado, ao centro da página. A ilustradora dispensa a página inteira que é lhe é reservada, e assim aumenta a sensação de opressão da árvore, acuada entre prédios e mais prédios. Do que jeito que dá, a árvore cresce, avoluma-se. A consequência desse crescimento é sua poda, pelas mãos humanas, coisa que a árvore não compreende. Por desconhecer a lógica do novo espaço - a apertada cidade - ela tenta corrigir seu crescimento, desviando seus galhos para cima - não mais para os lados. Novamente, crescidos os galhos, surgem os homens que os "amputam" (verbo usado por Oswaldo. E na ilustração, pra fazer uma tabelinha com o texto, tem-se os homens com foices e vestidos de barbeiros (!), aproximando a árvore de um caráter humano). A ingênua árvore crê que os homens são seus benfeitores, e se dispõe a mudar por eles novamente - decide parar de crescer. O que acontece? "E como ela não crescesse mais,/os homens a arrancaram da praça e colocaram outra em seu lugar". Um desfecho cruel, que obriga o leitor a parar para pensar após a leitura. Onde está o erro? Por que esse fim tão ruim para a generosa árvore?
A ingratidão também é um sentimento que ecoa (junto com vários outros) nas páginas do outro livro, "A árvore generosa", de Silverstein. Mas sob um viés bem diferente: o amoroso. "Era uma vez uma árvore... que amava um menino", inicia Silverstein, autor do texto e das ilustrações. O leitor é apresentado à história de cumplicidade entre o menino e a árvore. Todo dia o menino lá, brincando. Trepando no tronco, catando folhas, comendo os frutos dela, balançando-se, ou brincando de esconde-esconde com a árvore.... numa rotina feliz. "O menino amava a árvore.../ profundamente./E a árvore era feliz". Mas logo surge o tempo com suas mudanças. E a narrativa toma um novo rumo quando o menino cresce. "O menino cresceu", diz o texto, enquanto a ilustração, completando as palavras, mostra a árvore, e atrás dela quatro pernas que se deixam entrever... duas do menino.... e duas de uma nova companheira. "E árvore muitas vezes ficava sozinha". Árvore que, ao longo de todo o livro, nunca se mostra inteira (vide foto). Nunca em sua totalidade. Oprimida? Acuada pelo amor excessivo que dispensa ao menino? Bem possível. A sequência da narrativa parece atestar isto, ao mostrar o menino - que andava sumido e agora já é um moço- voltando para sua companheira. A árvore não perde tempo: convida-o a brincar em seus galhos, comer suas maças, reviver aqueles bons momentos. Mas o menino não é mais o mesmo. Não tem mais tempo a perder com brincadeiras. Agora quer se divertir, comprar muitas coisas. "Você tem algum dinheiro que possa me oferecer?", ele pede. Mas ela é apenas uma árvore. "Sinto muito (...) mas eu não tenho dinheiro. Tenho apenas minhas folhas e minhas macãs. Mas leve as maçãs, Menino. Vá vendê-las na cidade. Então terá dinheiro e você será feliz." É o que o Menino faz: colhe as maças, vai embora. E a árvore? "E a árvore ficou feliz", num refrão da passividade que se estenderá por todo o texto. Sempre que precisa de ajuda, volta o menino. Adolescente, adulto, idoso. Sempre a pedir. Sempre a levar tudo o que a árvore tem. E árvore, generosa, sempre feliz em poder ajudar seu amado. Amado, sim. Mas quem é esse amado? Seu filho? Seu homem?. Talvez a escolha do fruto - a maçã - seja mais uma pista para acolhermos essa segunda ideia.... mas que ser, senão uma mãe, seria tão generosa, a ponto de ficar à vida toda cuidando do Menino (nome que ele mantem por toda a hostória, não importa quantos anos passem - coisa de mãe, isso), enquanto ele vivia seus amores e desgostos? Só uma mãe... Que é essa árvore? Mãe? Amante? ... um pouco das duas, quem sabe. Árvore que, ao final do texto, após tantos pedidos, se reduz a um mero toco. E o Menino está velho e cansado. Nada lhe resta a não ser descansar. E a ávore nada pode oferecer senão a si mesmo, como uma cadeira, para o Menino sentar. Para ela ser feliz mais uma vez... será?
Esse livro do Shel é outro do qual o leitor não sai ileso, sem se debater com suas próprias ideias acerca do amor, e do quanto é preciso se doar ao outro.
Nas duas histórias, as árvores - por diferentes razões - perdem seus galhos. Difícil não associar essas imagens com a questão da preservação ambiental, ideia em voga há alguns anos (certamente um tema discutido nos idos da década de 80.... agora, década de 60.. confere?). Ao mesmo tempo, é fácil notar que essa não é a intenção única dos dois livros. Especialmente o de Shel, que trata do amor e dos infinitos sentimentos que o rondam (ingratidão, generosidade, alegria, solidão, companheirismo, etc). A história de Oswaldo, essa sim, perpassa de forma clara essa questão problemática, que é o avanço das cidades sobre o espaço natural. Ao relatar a grande dificuldade de apenas uma (!) árvore em se adaptar à mecânica cruel de uma cidade, o autor critica essa opressão dos humanos sobre toda a natureza. Mas se limitasse apenas à essa preocupação, o pequeno texto de França Junior e as ilustrações de Angela Lago, não tornariam o livro tão bonito quanto ele é. Um grande tema dos dois livros - e que dá beleza a eles - é o difícil relacionamento tre dois seres diferentes - árvore e homem, nesse caso. Por mais que a árvore pensante desenhada por Angela apresente características humanas (usa óculos, travesseiro, anda de carro até a praça onde é colocada...) ela não é humana. é uma árvore, condição que a impossibilita de viver igual-para-igual com os homens, que acabam rejeitando-a. Não seria essa impossibilidade algo que assombra também a árvore de Shel (que não podendo amar o Menino, dá tudo que tem a ele... inclusive seu próprio tronco). São perguntas e mais perguntas, que não pedem uma resposta única. Afinal, nessas florestas de sentidos, cada leitor vê de forma diferente essas duas árvores, pensantes e generosas.
REFERÊNCIAS:
JUNIOR, Oswaldo França; LAGO, Angela. A árvore que pensava. 3 ed. Ed. Nova Fronteira. 1986
SILVERSTEIN, Shel. A árvore generosa. Tradução de Fernando Sabino. Ediouro. 1964.
PS: Desculpas a quem não gosta que a história do livro seja contada, especialmente quando o resenhista cita cruciais partes como o clímax ou desfecho da história. às vezes não consigo evitar...
PS: Desculpas a quem não gosta que a história do livro seja contada, especialmente quando o resenhista cita cruciais partes como o clímax ou desfecho da história. às vezes não consigo evitar...
terça-feira, 12 de outubro de 2010
pra dialogar com o da Henriqueta, outro poema
....com um sentimento religioso um pouco mais redutor, mas com a mesma ideia de contemplação das crianças, associando-as ao sentimento de pureza, eis o sempre clássico Robert Louis Stevenson:
A THOUGHT
It is very nice to think
The world is full of meat and drink
With little children saying grace
In every Christian kind of place
A THOUGHT
It is very nice to think
The world is full of meat and drink
With little children saying grace
In every Christian kind of place
sexta-feira, 8 de outubro de 2010
como não amá-las?
Oração
Na alcova com lâmpada
e sombras secretas
uma criança reza.
Vento que entre folhas
passas sussurrando,
se entrasses na alcova
em que reza a criança
reconhecerias
o mais tenro broto
que jamais abriu
o orvalho da noite.
O’ anjos de Deus
baixai vossos olhos
por entre as estrelas
contemplai, suspensos
aos elos da graça
o irmãozinho tenro
– sem céu e sem asas –
que de joelhos reza.
Na alcova com lâmpada
e sombras secretas
em que tua criança
de mãos postas reza
nem tu, Mãe, não entres:
Menino Jesus
deve estar presente.
(Henriqueta Lisboa)
-----
Estive relendo "O menino poeta" (desta vez numa edição da Peirópolis, lindíssima, com desenhos de Nelson Cruz), livro de onde retirei esse poema. Impossível não se apaixonar pelos versos da Henriqueta, tão lírica, doce. No livro, versa principalmente sobre a infância. Mas não se trata de um livro para crianças; e sim um livro que todos podem ler. Inclusive as crianças. Não há tatibitate, não há meros jogos de palavras. O que há são metáforas sensíveis, dessa moderna com jeito de clássico, ou o oposto disso, não importa. A leitura desse livro me acordou para um assunto que vivo matutando: a poesia para crianças. existe? certamente. e essa poesia destinada exclusivamente à criança é de boa qualidade? bom... assunto para postagens futuras. Por ora, deixo esse poema. Seu título religioso e a referência a Jesus enganam um leitor apressado: o tema desse poema é bem outro (é um poema universal, não importando se o leitor é ateu, budista, católico: a beleza está ali, sem credo). E qual tema? A criança. A criança e sua candura, que de tão cálida, torna o arredor repouso para Jesus, ente máximo da pureza. Mas com isso não quero dizer que, no livro O menino poeta, a visão que se passa da criança é a de um ser puro e ingênuo (para isso, vide o poema "Consciência"). Não confundamos. A criança desse livro ora é anjo, ora é capeta a fazer suas artes. Só lendo pra curtir. Mas hei de falar mais de Henriqueta aqui, por que ela merece. E quero falar mais sobre essa relação poesia & criança, ainda que eu não tenha muita experiência nesse campo. Se alguém tiver alguma contribuição, por favor, conte. Será bem-vinda. Por ora, fico com a sensação de paz e felicidade, que cada releitura do poema acima me traz.
Na alcova com lâmpada
e sombras secretas
uma criança reza.
Vento que entre folhas
passas sussurrando,
se entrasses na alcova
em que reza a criança
reconhecerias
o mais tenro broto
que jamais abriu
o orvalho da noite.
O’ anjos de Deus
baixai vossos olhos
por entre as estrelas
contemplai, suspensos
aos elos da graça
o irmãozinho tenro
– sem céu e sem asas –
que de joelhos reza.
Na alcova com lâmpada
e sombras secretas
em que tua criança
de mãos postas reza
nem tu, Mãe, não entres:
Menino Jesus
deve estar presente.
(Henriqueta Lisboa)
-----
Estive relendo "O menino poeta" (desta vez numa edição da Peirópolis, lindíssima, com desenhos de Nelson Cruz), livro de onde retirei esse poema. Impossível não se apaixonar pelos versos da Henriqueta, tão lírica, doce. No livro, versa principalmente sobre a infância. Mas não se trata de um livro para crianças; e sim um livro que todos podem ler. Inclusive as crianças. Não há tatibitate, não há meros jogos de palavras. O que há são metáforas sensíveis, dessa moderna com jeito de clássico, ou o oposto disso, não importa. A leitura desse livro me acordou para um assunto que vivo matutando: a poesia para crianças. existe? certamente. e essa poesia destinada exclusivamente à criança é de boa qualidade? bom... assunto para postagens futuras. Por ora, deixo esse poema. Seu título religioso e a referência a Jesus enganam um leitor apressado: o tema desse poema é bem outro (é um poema universal, não importando se o leitor é ateu, budista, católico: a beleza está ali, sem credo). E qual tema? A criança. A criança e sua candura, que de tão cálida, torna o arredor repouso para Jesus, ente máximo da pureza. Mas com isso não quero dizer que, no livro O menino poeta, a visão que se passa da criança é a de um ser puro e ingênuo (para isso, vide o poema "Consciência"). Não confundamos. A criança desse livro ora é anjo, ora é capeta a fazer suas artes. Só lendo pra curtir. Mas hei de falar mais de Henriqueta aqui, por que ela merece. E quero falar mais sobre essa relação poesia & criança, ainda que eu não tenha muita experiência nesse campo. Se alguém tiver alguma contribuição, por favor, conte. Será bem-vinda. Por ora, fico com a sensação de paz e felicidade, que cada releitura do poema acima me traz.
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domingo, 26 de setembro de 2010
Os árabes e as histórias
O CONTADOR DE HISTÓRIAS NO ORIENTE
(Humberto de Campos)
--Antes da revolução que vem sublevando a Ásia e que subdividiu o antigo império Otomano, não havia aldeia que não possuísse o seu contador de lendas, que correspondia aos nossos cantadores sertanejos, com a diferença, apenas, de ter aquele um campo mais vasto, consubstanciado numa tradição mais rica, e de gosto mais puro. Cidades havia em que esses rapsodos se reuniam, formando associações de classe, nas quais eram contratados para festas e estabelecimentos de diversões. Cairo, Damasco, Smirna, Constantinopla, possuíam corporações desse gênero, dirigidas por um deles, de maior autoridade, o qual tinha o título de “cheik elmedah”, que significa “chefe dos contadores de cafés”. É um espetáculo curioso – escrevia Hammer, há oitenta anos, - é um espetáculo curioso acompanhar as impressões que as histórias produzem na alma ardente ou apaixonada dos árabes... Conforme a palavra cadenciada do narrador, os ouvintes se agitam ou se acalmam. À cólera violenta sucedem os sentimentos mais ternos; os risos estridentes são, não raro, seguidos de prantos e lamentações. Se o herói do conto é ameaçado de perigo iminente, os ouvintes exclamam, em coro: “Lá, lá, lá, estagfer Allah”. (“Não, não, não, Deus não consentirá!”). Quando um bandido dissimulado ou um amigo desleal prepara uma de suas ciladas, surge, logo, de todos os lados, a imprecação: “Que Cheitã (o Demônio) castigue o traidor!”. Se o herói do conto é um bravo e tomba em combate seguem-se as expressões com que são homenageados os mortos: “Que Deus o receba na sua misericórdia! Que Deus o tenha em santa paz!” E se o narrador fala de uma mulher formosa, o auditório exalta-se como se a tivesse diante dos olhos: “Glória a Deus que criou a mulher!” “Exaltado seja o Altíssimo que criou a Beleza e a Mulher!”
-- Já no Século XX, Mardrus, francês de Constantinopla, que se criara entre árabes, externava essa mesma impressão. “Todo artista que viajou o Oriente, escrever este, no seu estilo das “Mil e Uma Noites”; - todo artista que viajou o Oriente e tomou lugar nos bancos calados dos adoráveis cafés populares das verdadeiras cidades muçulmanas e árabes: no velho Cairo, de ruas cheias de sombras e permanentemente frescas: em Damasco, em Sana, do Iêmen, em Bagdá ou Mascate; todo aquele que dormiu na esteira imaculada do beduíno de Palmira, ou partiu o pão e saboreou o sal fraternalmente na solidão gloriosa do Deserto com Ibn-Rachid, o suntuoso, o tipo inconfundível do árabe autêntico ou, ainda, se deteve a escutar uma palestra de simplicidade antiga do puro descendente do profeta, o xerife Hussein-bem-Ali-Bem-Aun, Emir de Meca, pôde notar, com certeza, a expressão das pitorescas fisionomias reunidas. Um sentimento único domina toda a assitência; uma hilariedade louca. Ela flameja com vitais estalidos ante as descrições do narrador público, que no centro do café ou da praça gesticula, move-se, passeia ou brinca, para dar maior expressão à narrativa no meio dos espectadores risonhos... E apodera-se de vós outros a geral embriaguez suscitada pelas palavras ou pelos sons imitativos, e vós sentis como se fosseis navegantes aéreos na frescura da noite”. E Mardrus conclui: “O árabe não é mais que um instintivo; mas um instintivo apurado, exquisito*. Ama a linha pura, e a adivinha com a sua imaginação, quando irreal. E sonha.... sonha...”
-- O árabe vive, assim, a vida da sua imaginação. Para ele, os heróis das suas narrativas são reais e palpáveis. E essa facilidade em confundir a realidade com a cnocepção dos sentidos é que explica o surto prodigioso do islamismo no dia em que um homem, aproveitando o poder sincrético dessas iamginações ardentes, as pôs em ação para levar a efeito uma formidável obra religiosa e política.”
(Do livro “Mil Histórias sem Fim...” de Malba Tahan – Trecho do prefácio).
Extraí essa citação – e essa referência acima – de “A arte de ler e contar histórias”, também de Malba Tahan. Editora Conquista. 1957. Páginas 81-83.
*OBS: no original, “exquisito” mesmo, com X. fiquem em dúvida se é o mesmo “esquisito” que conheço.
Essa afirmação, ali no fim, de que "facilidade [do povo árabe] em confundir a realidade com a concepção dos sentidos", ou seja, uma ingenuidade, influencia assim o curso de sua História (ascensão de Maomé... e nos dias de hoje, as disputas religiosas) rende uma boa discussão. Mas a intenção dessa postagem é outra: sentir esse modo apaixonado dos árabes, que creem nos seus heróis como seres palpáveis. Palpáveis através da palavra. Não dá vontade de estar lá?
(Humberto de Campos)
--Antes da revolução que vem sublevando a Ásia e que subdividiu o antigo império Otomano, não havia aldeia que não possuísse o seu contador de lendas, que correspondia aos nossos cantadores sertanejos, com a diferença, apenas, de ter aquele um campo mais vasto, consubstanciado numa tradição mais rica, e de gosto mais puro. Cidades havia em que esses rapsodos se reuniam, formando associações de classe, nas quais eram contratados para festas e estabelecimentos de diversões. Cairo, Damasco, Smirna, Constantinopla, possuíam corporações desse gênero, dirigidas por um deles, de maior autoridade, o qual tinha o título de “cheik elmedah”, que significa “chefe dos contadores de cafés”. É um espetáculo curioso – escrevia Hammer, há oitenta anos, - é um espetáculo curioso acompanhar as impressões que as histórias produzem na alma ardente ou apaixonada dos árabes... Conforme a palavra cadenciada do narrador, os ouvintes se agitam ou se acalmam. À cólera violenta sucedem os sentimentos mais ternos; os risos estridentes são, não raro, seguidos de prantos e lamentações. Se o herói do conto é ameaçado de perigo iminente, os ouvintes exclamam, em coro: “Lá, lá, lá, estagfer Allah”. (“Não, não, não, Deus não consentirá!”). Quando um bandido dissimulado ou um amigo desleal prepara uma de suas ciladas, surge, logo, de todos os lados, a imprecação: “Que Cheitã (o Demônio) castigue o traidor!”. Se o herói do conto é um bravo e tomba em combate seguem-se as expressões com que são homenageados os mortos: “Que Deus o receba na sua misericórdia! Que Deus o tenha em santa paz!” E se o narrador fala de uma mulher formosa, o auditório exalta-se como se a tivesse diante dos olhos: “Glória a Deus que criou a mulher!” “Exaltado seja o Altíssimo que criou a Beleza e a Mulher!”
-- Já no Século XX, Mardrus, francês de Constantinopla, que se criara entre árabes, externava essa mesma impressão. “Todo artista que viajou o Oriente, escrever este, no seu estilo das “Mil e Uma Noites”; - todo artista que viajou o Oriente e tomou lugar nos bancos calados dos adoráveis cafés populares das verdadeiras cidades muçulmanas e árabes: no velho Cairo, de ruas cheias de sombras e permanentemente frescas: em Damasco, em Sana, do Iêmen, em Bagdá ou Mascate; todo aquele que dormiu na esteira imaculada do beduíno de Palmira, ou partiu o pão e saboreou o sal fraternalmente na solidão gloriosa do Deserto com Ibn-Rachid, o suntuoso, o tipo inconfundível do árabe autêntico ou, ainda, se deteve a escutar uma palestra de simplicidade antiga do puro descendente do profeta, o xerife Hussein-bem-Ali-Bem-Aun, Emir de Meca, pôde notar, com certeza, a expressão das pitorescas fisionomias reunidas. Um sentimento único domina toda a assitência; uma hilariedade louca. Ela flameja com vitais estalidos ante as descrições do narrador público, que no centro do café ou da praça gesticula, move-se, passeia ou brinca, para dar maior expressão à narrativa no meio dos espectadores risonhos... E apodera-se de vós outros a geral embriaguez suscitada pelas palavras ou pelos sons imitativos, e vós sentis como se fosseis navegantes aéreos na frescura da noite”. E Mardrus conclui: “O árabe não é mais que um instintivo; mas um instintivo apurado, exquisito*. Ama a linha pura, e a adivinha com a sua imaginação, quando irreal. E sonha.... sonha...”
-- O árabe vive, assim, a vida da sua imaginação. Para ele, os heróis das suas narrativas são reais e palpáveis. E essa facilidade em confundir a realidade com a cnocepção dos sentidos é que explica o surto prodigioso do islamismo no dia em que um homem, aproveitando o poder sincrético dessas iamginações ardentes, as pôs em ação para levar a efeito uma formidável obra religiosa e política.”
(Do livro “Mil Histórias sem Fim...” de Malba Tahan – Trecho do prefácio).
Extraí essa citação – e essa referência acima – de “A arte de ler e contar histórias”, também de Malba Tahan. Editora Conquista. 1957. Páginas 81-83.
*OBS: no original, “exquisito” mesmo, com X. fiquem em dúvida se é o mesmo “esquisito” que conheço.
Essa afirmação, ali no fim, de que "facilidade [do povo árabe] em confundir a realidade com a concepção dos sentidos", ou seja, uma ingenuidade, influencia assim o curso de sua História (ascensão de Maomé... e nos dias de hoje, as disputas religiosas) rende uma boa discussão. Mas a intenção dessa postagem é outra: sentir esse modo apaixonado dos árabes, que creem nos seus heróis como seres palpáveis. Palpáveis através da palavra. Não dá vontade de estar lá?
sábado, 18 de setembro de 2010
a Dai e o Hai-kai
A Daia estava me contando o desenrolar de seu estágio em sala de aula: um projeto para aproximar os alunos de 5ª série com o haicai, forma poética originária do Japão, e já bem abrasileirada. Está muito bacana, pelo que ela me contou; as crianças estão curtindo muito esse trabalho com a poesia. O projeto dela, bonito, contribui para isso. Quero ver se a faço vir aqui no blog, criado por ela, pra compartilhar um pouco dessa experiência.
E o mais gostoso de ouvir a daia falando, é o jeito como ela narra as atitudes dos alunos: afobados, muito curiosos, falando pelos cotovelos... e narra de uma forma meiga (eu não conseguiria narrar daquela forma), aproximando-se do jeito com que as crianças se expressam. Em resumo: uma graça!
Aqui embaixo uma nota divertida dessa apresentação do haicai aos alunos:
Daiane/professora: Mas voces sabem o que é haicai?
Aluno1 (sem ironia, está claro): é uma luta professora, é arte marcial!!
:)
E o mais gostoso de ouvir a daia falando, é o jeito como ela narra as atitudes dos alunos: afobados, muito curiosos, falando pelos cotovelos... e narra de uma forma meiga (eu não conseguiria narrar daquela forma), aproximando-se do jeito com que as crianças se expressam. Em resumo: uma graça!
Aqui embaixo uma nota divertida dessa apresentação do haicai aos alunos:
Daiane/professora: Mas voces sabem o que é haicai?
Aluno1 (sem ironia, está claro): é uma luta professora, é arte marcial!!
:)
sábado, 11 de setembro de 2010
O coração de Corali é o nosso coração
Hoje vim aqui para o blog pensando em escrever sobre um certo livro que ando lendo. Mas vai ficar pra outra hora, pois meu coração quer falar de outra leitura. Um livro infantojuvenil (só para efeito de ficha catolográfica né!) que conheci ano passado e pelo qual me apaixonei; virou favorito. É esse "O coração de Corali" da foto, escrito por Eliane Ganem e ilustrado por Elvira Vigna. Esta é uma parceria e tanto. Aliás, eu acho que as duas não tem o reconhecimento que merecem, porque são baita autoras e quase não ouço falar sobre suas obras. Pra quem não sabe, a Elvira Vigna além de ser ilustradora, é também romancista e autora de livros infantojuvenis. É dela a série de livros do monstro Asdrúbal, que é uma das coisas mais engraçadas da literatura infantojuvenil brasileira.
Mas deixa eu falar do livro. Ele começa assim: "O coração de Corali é tão grande que é capaz de caber um caminhão." Corali é uma menina que em seu coração reserva um pedaço para cada um: para o pai, a mãe, para os avós, para o Sapoti, seu cachorro vira-lata. Mas logo o leitor é avisado que essa menina - que carrega o coração em seu nome - tem um problema: ela tem um buraco no peito. E esse buraco faz surgir um enorme espaço dentro do coração. Um espaço fundo, que traz agonia por não se preencher. Essa inquietação de Corali preocupa a família. Todos se reúnem, e cada um dá um palpite para resolver o caso. Porque, a princípio, este é um problema que só Corali tem. Mas nenhuma sugestão dá certo: o problema de Corali não se resolveu com mais amigos, nem com a chegada de outro irmãozinho, nem com nada. E ninguém deixou Corali explicar o que sentia. Ante a ineficácia das sugestões adultas, pontua a narradora: "Gente grande, às vezes, acha que gente pequena não tem opinião." Qual seria o problema do coração de Corali?
Desde a capa até a última página, o livro conta com essas ilustrações provocantes de Vigna. Na capa, uma menina sem rosto, sem traços. Uma menina-buraco. E é assim com todos os personagens ao longo do livro. Ninguém tem face, apenas os contornos e o vazio branco, branco. Com seus traços geniais, Vigna quer lembrar que cada um tem seu buraco no coração, seja adulto, criança, velho ou cãozinho. Não importa a quantidade de traços físicos e psicológicos que nos diferenciam: o buraco está sempre lá. Eliminando essas diferenças, Vigna faz, dos homens, um só coração.
Mas naquele meio de adultos perdidos, há a tia gorda, que fica cismando sobre o buraco de menina. E "ficava olhando Corali com um olhar compriiiido, como se dissesse tanta confusão por causa de um buraco vazio no peito".
Um dia, a tia gorda aparece sozinha na casa de Corali. Enquanto a mãe dela dorme, elas começam a conversar. A tia gorda pergunta "Como vai o buraco?" e vai perguntando, perguntando várias coisas sobre o buraco, e aos poucos Corali vai se revelando: "é grande, mede uns cinco metros, não é feio nem bonito, é escuro de meter medo, incomoda quando alguém se importa com ele, aumenta em dia de chuva, continua seco quando eu tomo banho, quando eu tô alegre ele quase some; e respondeu mais de meia hora". A tia gorda, então, tira dois chocolates da bolsa, oferece um a Corali e revela: "este papo me deixou triste [...] Sabe! Você tem um buraco no coração igual ao meu"". Uma descoberta e tanto pra menina que achava que o buraco era um problema que só ela tinha. E assim a tia gorda vai falando sobre o vazio dela. Esse buraco que tem tanto nome: "Cada nome estranho, comprido. Eu prefiro chamar de buraco mesmo", diz a tia. E a tia também conta sobre os vários jeitos que as pessoas encontram para preencher o buraco: há quem fume, há quem trabalhe muito, mais do que precisa; há quem coma chocolate. Cada um com seu jeito de tapar o que é intapável. Pois esse buraco não some, está sempre ali. O que podemos é diminuí-lo.
Após essa conversa tão doce, de amor e bombons, vão as duas, Corali e tia gorda, ao cinema. Pra curtir a vida. Pra ser feliz e diminuir ainda mais aquele buraquinho. Eu queria botar a frase final aqui, pra dizer mais uma vez que adoro esse livro. Mas não devo; chega de botar trechos. Quero é convidá-los a lerem Corali e curtirem por conta própria essa história.
Há tema mais humano que esse? É um livro que, em suas poucas páginas e com linguagem simples, diz muito. É graças a autoras como Eliane e Vigna que a literatura infantojuvenil mostra-se forte, firme, com a temática sempre pegada à nossa condição humana, e não como sistema menor, onde historinhas fúteis são contadas. Um livro que de forma muito doce motiva a criança, seja lá que idade tenha, 8 ou 30, 23 ou 89 anos, a pensar sobre o que sente, e a refletir sobre a forma com que estamos todos unidos por essa condição comum, inerente ao ato de existir.
Porque eu também tenho um buraco no coração. Você também. Eu tenho um desse Tamanho! E se é verdade - como disse a tia gorda - que cada um tem um jeito de preenchê-lo, sei bem quais são os meus três segredos: chocolate, balas de goma... e ler livros assim, tão especiais, como este "Coração de Corali".
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terça-feira, 7 de setembro de 2010
para mergulhar na fala de Angela Lago
"El lector es coautor, por el simple hecho de pasar la página."
e em outro momento:
"Estoy cada vez más interesada en los dibujos* de niños que siempre me enseñan una manera más contundente que las que he venido utilizando en mis narrativas visuales"
* desenhos
Trechos da "Gramática Visual" dessa autora maravilhosa.
A totalidade dessa fala bonita, e com as ilustrações, está aqui no site da Angela.
e em outro momento:
"Estoy cada vez más interesada en los dibujos* de niños que siempre me enseñan una manera más contundente que las que he venido utilizando en mis narrativas visuales"
* desenhos
Trechos da "Gramática Visual" dessa autora maravilhosa.
A totalidade dessa fala bonita, e com as ilustrações, está aqui no site da Angela.
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domingo, 22 de agosto de 2010
sobre imagens
Oi, Cris.
Pergunta respondida, muito obrigado!
Primeiro, devo dizer que sua postagem ficou muito bonita. Pelo que você disse e pelos dizeres que você trouxe para ela.
Quanto à sua experiência com o livro "pena quebrada", penso que isso ocorre comigo também. Com ilustrações? Sim, mas muito mais com o texto: como se meus olhos botassem a linha narrativa do texto na frente das imagens. O que me parece uma incongruência. Essa questão das duas narrativas (pelo menos duas, como você apontou) presentes numa história é muito pertinente. A ilustração, por vezes, não é uma narrativa paralela à textual, mas sim um pedaço dela, parte indissociável. Um exemplo que sempre me ocorre é 'Flicts', do Ziraldo. É um clássico, bem provável que você o conheça. O bom texto pode ser muito imagético, mas um caso como o de Flicts (que conta a história de uma cor, uma cor desconhecida, que ao longo do livro se descobre), cujo personagem é, aparentemente, uma cor nova, não há texto com força para montar essa imagem. O que é esse livro sem os desenhos? Simplesmente não existe.
Parece uma incongruência, um pecado, aquilo que eu disse de dar uma "prioridade" ao texto, ainda mais se pensarmos na dependência que há entre elas (na maioria dos livros). Mas é o que costuma ocorrer. É bem o que vc disse: o modo de se aproximar de um livro. Reconheço a importância das imagens, sinto quando ela dialoga com o texto, ou quando ela toma um outro rumo dele: uma nova linha. Gosto muito de narrativas visuais. Mas (e foi isso que apontei pra você) frequentemente não me ocorre nada mais do que adjetivos (ilustração bonita, desenhos bem feitos, etc) para descrever o que achei da narrativa que os desenhos contam num certo livro. Como se eu sentisse a linguagem, mas não soubesse explicá-la. Continuo achando que é uma questão de sensibilidade, de se abrir mais para a percepção das imagens. talvez eu precise fazer mais exercíciso para o olhar, como sua professora fez com Monet, rs. Não é verdade que a gente¹ é vidrado no texto? Quando digo a gente, falo da maioria, sempre tão centrada em textos disso, textos daquilo, mas incapazes de reparar numa placa engraçada na rua, ou um detalhe delicado da fotografia de um filme. Aliás, creio que estou complicando o que não deve ser complicado. Afinal, perder-se em elucubrações sobre jeitos de se ler uma história é se perder delas, sempre tão simples... pra quem se dispõe a acompanhá-las.
E falando em beleza e simplicidade, ah, você citou a regina machado. Pois estou lendo um livro dela, sobre contação de histórias (e, ah, sou um contador com pouquíssima experiência, PLZ!), no qual ela fala justamente disso... de como o contador 'conquista' e é conquistado por uma 'história', um jogo duplo, que a regina descreve com muita beleza. fala de um bosque (que ela vê na altura do peito) no qual uma história entra, onde o contador a internaliza. Achei essa imagem muito bonita, a do bosque, e bom que você a recordou. A maioria dos textos (placas, jornais, revistas, romances ruins que não mexem com o leitor, conversas banais, artigos) não chega até lá, pois deciframos sem qualquer trabalho, sem fruição, suas mensagens. Mas uma história é muito mais do que uma mensagem a ser decifrada: uma história bem escrita ou bem contada envereda por dentro da gente (e a gente envereda por ela) e deságua no bosque, que alguns chamam só de coração mesmo. E se pensarmos que cada um tem um bosque diferente (bagagens...), com mais ou menos árvores, com mais ou menos arbustos, com galhos, cipós, folhagens densas ou não, se embarcarmos nessa metáfora da regina, chegamos à ideia de que cada história chega de um jeito ao bosque de uma pessoa. muito linda, essa fala da regina. e que ótimo deve ter sido essa oficina com ela, hein!
Voltando para as ilustrações, penso que tudo pode ser sintetizado por sua última frase: o sentido está no olhar de quem se dispõe a ler. Até porquê², um livro que dá um sentido único, que o leitor precisa achar, é automaticamente um péssimo livro. Isso vai contra a ideia de bosque criada pela regina. Aliás, isso me lembrou que larguei esse livro há alguns dias para ler uns contos e desde então não peguei mais nele. vê se pode! Hoje retomo, talvez.
Agradeço novamente sua atenciosa postagem. E bom que perguntei.
Abraço!
Nota:
¹ Se você me permite uma nota de pouca importância, aqui digo que costumo usar a expresão "a gente", "os brasileiros", generalizo mesmo, ainda que saiba (é óbvio!) das muitas exceções que essa expressão não leva em conta. Muita gente critica isso, inclusive alguns linguistas, mas acho bobagem, e talvez use "a gente" mais por cisma do que necessidade.
² Permita, então, uma segunda nota. Ainda mais sem importância, pois gramatical. Costumo pensar a regra do 'porque/por que' assim: 1- com sentido de 'pois' - porque. 2- com sentido de 'pela razão, pelo jeito, pelo motivo, pela ocasião, etc' - por que . E agora, e essa expressão mais da fala do que da escrita (até porque), é separado ou junto? tem acento? Não responda. Eu poderia mudar a frase, mas um dos cacoetes que tenho é manter as dúvidas gramaticais e depois ficar divagando sobre elas. sei lá por quê.
Pergunta respondida, muito obrigado!
Primeiro, devo dizer que sua postagem ficou muito bonita. Pelo que você disse e pelos dizeres que você trouxe para ela.
Quanto à sua experiência com o livro "pena quebrada", penso que isso ocorre comigo também. Com ilustrações? Sim, mas muito mais com o texto: como se meus olhos botassem a linha narrativa do texto na frente das imagens. O que me parece uma incongruência. Essa questão das duas narrativas (pelo menos duas, como você apontou) presentes numa história é muito pertinente. A ilustração, por vezes, não é uma narrativa paralela à textual, mas sim um pedaço dela, parte indissociável. Um exemplo que sempre me ocorre é 'Flicts', do Ziraldo. É um clássico, bem provável que você o conheça. O bom texto pode ser muito imagético, mas um caso como o de Flicts (que conta a história de uma cor, uma cor desconhecida, que ao longo do livro se descobre), cujo personagem é, aparentemente, uma cor nova, não há texto com força para montar essa imagem. O que é esse livro sem os desenhos? Simplesmente não existe.
Parece uma incongruência, um pecado, aquilo que eu disse de dar uma "prioridade" ao texto, ainda mais se pensarmos na dependência que há entre elas (na maioria dos livros). Mas é o que costuma ocorrer. É bem o que vc disse: o modo de se aproximar de um livro. Reconheço a importância das imagens, sinto quando ela dialoga com o texto, ou quando ela toma um outro rumo dele: uma nova linha. Gosto muito de narrativas visuais. Mas (e foi isso que apontei pra você) frequentemente não me ocorre nada mais do que adjetivos (ilustração bonita, desenhos bem feitos, etc) para descrever o que achei da narrativa que os desenhos contam num certo livro. Como se eu sentisse a linguagem, mas não soubesse explicá-la. Continuo achando que é uma questão de sensibilidade, de se abrir mais para a percepção das imagens. talvez eu precise fazer mais exercíciso para o olhar, como sua professora fez com Monet, rs. Não é verdade que a gente¹ é vidrado no texto? Quando digo a gente, falo da maioria, sempre tão centrada em textos disso, textos daquilo, mas incapazes de reparar numa placa engraçada na rua, ou um detalhe delicado da fotografia de um filme. Aliás, creio que estou complicando o que não deve ser complicado. Afinal, perder-se em elucubrações sobre jeitos de se ler uma história é se perder delas, sempre tão simples... pra quem se dispõe a acompanhá-las.
E falando em beleza e simplicidade, ah, você citou a regina machado. Pois estou lendo um livro dela, sobre contação de histórias (e, ah, sou um contador com pouquíssima experiência, PLZ!), no qual ela fala justamente disso... de como o contador 'conquista' e é conquistado por uma 'história', um jogo duplo, que a regina descreve com muita beleza. fala de um bosque (que ela vê na altura do peito) no qual uma história entra, onde o contador a internaliza. Achei essa imagem muito bonita, a do bosque, e bom que você a recordou. A maioria dos textos (placas, jornais, revistas, romances ruins que não mexem com o leitor, conversas banais, artigos) não chega até lá, pois deciframos sem qualquer trabalho, sem fruição, suas mensagens. Mas uma história é muito mais do que uma mensagem a ser decifrada: uma história bem escrita ou bem contada envereda por dentro da gente (e a gente envereda por ela) e deságua no bosque, que alguns chamam só de coração mesmo. E se pensarmos que cada um tem um bosque diferente (bagagens...), com mais ou menos árvores, com mais ou menos arbustos, com galhos, cipós, folhagens densas ou não, se embarcarmos nessa metáfora da regina, chegamos à ideia de que cada história chega de um jeito ao bosque de uma pessoa. muito linda, essa fala da regina. e que ótimo deve ter sido essa oficina com ela, hein!
Voltando para as ilustrações, penso que tudo pode ser sintetizado por sua última frase: o sentido está no olhar de quem se dispõe a ler. Até porquê², um livro que dá um sentido único, que o leitor precisa achar, é automaticamente um péssimo livro. Isso vai contra a ideia de bosque criada pela regina. Aliás, isso me lembrou que larguei esse livro há alguns dias para ler uns contos e desde então não peguei mais nele. vê se pode! Hoje retomo, talvez.
Agradeço novamente sua atenciosa postagem. E bom que perguntei.
Abraço!
Nota:
¹ Se você me permite uma nota de pouca importância, aqui digo que costumo usar a expresão "a gente", "os brasileiros", generalizo mesmo, ainda que saiba (é óbvio!) das muitas exceções que essa expressão não leva em conta. Muita gente critica isso, inclusive alguns linguistas, mas acho bobagem, e talvez use "a gente" mais por cisma do que necessidade.
² Permita, então, uma segunda nota. Ainda mais sem importância, pois gramatical. Costumo pensar a regra do 'porque/por que' assim: 1- com sentido de 'pois' - porque. 2- com sentido de 'pela razão, pelo jeito, pelo motivo, pela ocasião, etc' - por que . E agora, e essa expressão mais da fala do que da escrita (até porque), é separado ou junto? tem acento? Não responda. Eu poderia mudar a frase, mas um dos cacoetes que tenho é manter as dúvidas gramaticais e depois ficar divagando sobre elas. sei lá por quê.
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sábado, 14 de agosto de 2010
sylvia orthof e um pouquinho do seu teatro infantil (teatro infantil?)
eu gosto muito da sylvia orthof, essa "inventadeira de palco e escrita". Pra quem não sabe, Orthof começou sua carreira no teatro, atuando. Com o tempo, tornou-se uma das melhores autoras de livros infanto-juvenis do país. E ela escreveu algumas peças também, tão boas como seus livros. O que aprecio em seus trabalho é o bom-humor original dela. lendo seus livros e peças você até consegue imaginar como era a Orthof como pessoa: uma velhota bem doida! É um bom-humor meio espalhafatoso, meio maluco, que brinca com tudo.
Esse livro aí da capa, que está em milhares de escolas por aí, por fazer parte do programa "literatura em minha casa", do MEC, é uma peça adorável, bom exemplo pra comprovar a qualidade do teatro infantil de sylvia. Na apresentação da obra, feita pela amiga Ana Maria Machado, um primeiro toque: reparar no título da obra. Sylvia apropria-se de um verbo e subverte as leis da sintaxe, afinal... tá todo mundo cansado de saber que "chover" é um verbo impessoal, logo não pode ter sujeito... mas no título de orthof temos 3! E essa brincadeira com as palavras está em todo o livro, isso que é bom.
E quando falamos em teatro, não podemos parar no texto, pois o teatro não existe até ser encenado. E a sylvia se mostrar uma autora muito atenciosa: ao longo do texto, nos rodapés, deixa observações a quem pretende encenar. São indicações sobre o melhor jeito de criar certa fantasia ou cena, sempre pensando no público: as crianças. E a peça está repleta de músicas. Melodias de cantigas populares como o 'sambalelê' ou 'atirei o pau no gato' são aproveitadas para canções cantadas pelos personagens. As fantasias são muito divertidas. E simples! Com guarda-chuvas, baldes e chuveiros os personagens (o atrapalhado Pingo de Chuva, sua tia doida, o Senhor chuveiro -chefe mandão do pingo-, a Ovo de Peixe, o Ovo Bonifácio, a dondoca Sereia... entre outros) podem ganhar vida.
Como se não bastasse a graça que há em toda a cena, na cena final, ainda, uma divertida "missão" é oferecida aos espectadores: ajudar a carregar um elefante (imaginário!) pra fora de cena, junto com os personagens.
Para falar um pouco mais sobre o texto da peça, acho válido reproduzir uma opinião de Maria Clara Machado, outra dama do teatro para crianças:
"Verdadeiros aventureiros se lançam ou se atrevem a fazer teatro para criança, desconhecendo não somente a criança, ou melhor, ignorando-a, como desconhecendo também as regras básicas para se fazer um bom espetáculo; produção e direção de atores quase sempre postas em segundo plano, cenas mal ensaiadas, onde os atores, muitas vezes, apenas estão procurando sobreviver economicamente sem se empenharem realmente nos papéis que representam. O teatro de segunda classe, onde nem os críticos teatrais dos principais jornais se aventuram a ir para não morrer de tédio ou de vergonha. Preferem calar, silenciar, ou melhor, não assistir a tais espetáculos que estão sendo oferecidos todos os finais de semanas às crianças. E onde estão os pais dessas crianças? Precisam ocupar seus filhos, dar-lhes qualquer coisa aos sábados e domingos. Também eles não tiveram nenhuma educação para o teatro e pensam que aquilo que dão aos filhos são coisas que realmente só servem para crianças, porque muito enfadonhas e desinteressantes. E muitas vezes deixam os filhos na porta do teatro, porque não têm coragem de ver, ou melhor, de aguentar o espetáculo. O tipo de teatro que se faz geralmente para crianças tende a desenvolver a vulgaridade, o lugar-comum, a tendência ao excitamento coletivo, à dispersão, ao fácil... e ao comercial."
Longe desse teatro do fácil, do lugar-comum, do teatro-só-pra-criancinhas, a peça de orthof é pra quem gosta de rir. rir um riso inteligente, de quem de repente teve suas ideias provocadas. Quero dizer que o teatro dela não é bobo. Um exemplo vem dos personagens Senhor Chuveiro e a Sereia: ele é o legítimo mandão, é o chefe da vida real, aquele que manda e desmanda. e pobre do Pingo de Chuva! E a Sereia é a dondoca, fútil, que só pensa em sua beleza. e pobre de sua criada, a Ova de Peixe! Pois tem uma hora que os "criados" se revoltam e mandam eles às favas, numa clara demonstração da ideia que orthof faz do autoritarismo: a maior besteira. E, adiante, subvertendo o esperado... a criada Ova se transforma na Princesova de Peixova.
Eis aqui um trecho muito legal, no qual o Ovo Bonifácio se transforma num tal (doideira!) Príncipe Elefântico (ou seja, montado num elefante....que é um elefante Tromba d´Água! rsrs). Reparem que ao falar de casamento e divórcio, com muito bom-humor, esse trecho abrange questões nem sempre presentes num teatro infantil boboca, desses que, durante meia hora, acontece um pega-pega, o lobo correndo atrás do porquinho, e o porquinho correndo atrás do lobo, e aí o lobo esbaforido corre atrás do porquinho e aí o porquinho dá um gritinho e diz socorro e aí chega o caçador (e nessa hora, os pais acordam do sono, mas voltam a dormir) e aí, pois onde eu estava?
Ah, sim, o trecho da peça da orthof! Ei-lo:
OVA: Você é o meu querido Ovo Bonifácio?
PRINCÍPE: Sou eu! E como numa chuva tudo pode acontecer, choveu e aconteceu. Quer casar comigo, minha Princesova de Peixova? Até que o divórcio nos separe?
OVA: E se a gente quiser casar pra sempre?
PRÍNCIPE: Aceito! Está feito!
OVA: E o Elefantinho? O que a gente faz com o Elefantinho Tromba d'Água?
PRÍNCIPE: Como nós nos amamos muito, para que nossa felicidade não seja perfeita, pois tudo o que é bom demais enjoa, levaremos o Elefantinho para o nosso apartamento! Sempre vai atrapalhar um pouco... É bom, para não sermos totalmente felizes!
Resumo da ópera: Hilariante esse texto da Orthof. Eu fico imaginando a montagem dele, e o que vejo é uma peça engraçadíssima, que faz todo mundo cair na risada, criança ou adulto. a orthof é genial. Desde a escolha dos nomes dos personagens (o Ovo Bonifácio, namorado da Ova de Peixe), até as falas rápidas, repletos de trocadilhos nonsense, tudo é muito legal. Uma peça cheia de música e doideira, que interage com o público e que diverte do início ao fim.
Mas e aí, é peça pra criança? É, é sim. É só pra criança, então? É, é só pra criança. Ah então adulto não deve achar graça, né? Olha, Adulto-adulto, esses do dicionário, não acharão graça. É peça pra criança: adulto-criança, velho-criança, pai/mãe-criança, crianças-crianças, sobretudo. Do contrário, favor aguardar do lado de fora. E silêncio, pois começa a chover e o espetáculo vai começar!
Referências: A citação da Maria Clara foi extraída do livro "Literatura Infantil: Teoria & Prática", de Maria Antonieta Antunes Cunha. Ed. Ática. 1986.
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sexta-feira, 16 de julho de 2010
As peripécias do Jabuti
Achei o livro bem bacana. Munduruku recupera 3 narrativas indígenas, sem autoria, que pertencem ao fabulário dos índios. Como o próprio Munduruku afirma no breve prefácio, um forte objetivo de tais contos na cultura indígena é propagar valores, especialmente aos mais jovens. "Propagar valores" soa perigoso, pois nos remete a textos que, em detrimento da qualidade, apelam para didatismos ou moralismos que tanto fazem mal à literatura. Dia desses, li no blog do Ítalo Puccini uma crítica a um dos livros de Munduruku para crianças (mas que não é este) justamente nesse ponto. E concordei com a crítica, pois li o tal do "O olho bom do menino" e achei horrível mesmo. Mas nesse caso específico, não senti esse problema. As 3 histórias, que tem o astuto Jabuti como protagonista, são fábulas. Como todas as fábulas, estas têm a intenção de passar valores, a famosa moral. Mas fazem pensar, fazem rir e confrontar nossos valores. A cultura indígena é milenar, e o fabulário é uma parte viva desta, que merece ser analisada como rica forma de expressão, ainda que tais fábulas não soem tão atraentes como muitas histórias contemporâneas. As ilustrações (da maravilhosa Ciça Fittipaldi) e o projeto gráfico bem-feitos ajudam a dar uma cara bacana ao livro. Munduruku é um bom contador de causos, e no fim, o livro é bem gostoso de se ler. As fábulas tratam do uso da sabedoria, da paciência e outros valores, a fim de vencer os que chacotam, são soberbos e apressados. As 3 fábulas são muito semelhantes. Nelas, o jabuti sábio sobressai-se sobre 3 animais orgulhosos. Gostei particularmente da terceira, pois nas duas primeiras o bicho age para se defender dos ataques orgulhosos dos outros animais. Nessa terceira, temos a tartaruga no melhor estilo "macunaíma": marota, malandra, politicamente incorreta, pregando uma peça na onça, num conto muito bem-humorado. Gostei e recomendo!
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sábado, 26 de junho de 2010
O menino camelô, a poesia, e o professô
VÔO TRISTE E VÔO ALEGRE
Enquanto a andorinha
na tarde, sozinha
viaja tristinha,
de flor em flor
voa o beija-flor
num miniventilador
----
Este poema aí de cima é um dos meu preferidos do livro "O menino camelô" (nome de um dos poemas), de Cyro de Mattos. Não preciso dizer, novamente, que o público alvo é o infantojuvenil, mas que é uma poesia destinada pra todo mundo, né? Bem, gostei também de poemas como "Urubu", que é muito simples, quase bobo, se a gente lê com pressa. Mas se para pra pensar... quem seria, quem seria esse "Urubu na valeta/de guarda-chuva e maleta" ou o "Urubu na escola/dá lições de vida?
São poemas divertidos, alguns bem delicados, outros toscos - com tom nonsense (adoro ^^). Mas todos fazem pensar. As ilustrações são do excelente ZeFlávio Teixeira, em tons meio "apagados": marrom, creme, laranja, diferente da habitual enxurrada de cores. Na verdade, trata-se de uma coleção da editora Atual, reunindo quatro títulos de poesia, com projetos gráficos semelhantes. O livro tem dimensões um pouco maiores que o comum; eu gostei.
Outro de que gostei muito:
O AMIGO-FOLHAGEM
Lá vem o Amigo-Folhagem
trazendo na sua bagagem
o verde de todas as folhas,
o verde de todos os mares.
Lá vem o Amigo-Folhagem
dizendo na sua passagem
que não tem medo de leão
e muito menos de visagem.
Lá vai o Amigo-Folhagem
pássaros cantam nas árvores
dois pousam em seus ombros,
o sol desfia ouro pelos ares.
Lá vai o Amigo-Folhagem
na direção da floresta,
leva bichos, Manhã e Noite
como companheiros de viagem.
Tem no Vento um velho amigo
que o acalenta quando dorme.
Selecionei esse poema pela sua delicadeza, e também por achá-lo muito propício para uma discussão sobre a singeleza da poesia [pensando em uma sala de aula], muitas vezes feita de cantos, retalhos e detalhes; um poema bom para nos fazer pensar em que consiste o ofício do poeta, como um poema se constrói. Muitas perguntas podem ser feitas ao poema:
- Por que será que palavras como "Vento", "Manhã" e Noite" estão em maiúsculas?
-Repararam no movimento "Lá vai/Lá vem", sendo que o Amigo Folhagem vai nas duas primeiras estrofes e vem na terceira e na quarta? Por quê, qual a intenção (ou intenções) dele?
- E esse Amigo-Folhagem? Seria algum bicho, alguma planta conhecida? Ou seria alguém inventado pelo poeta? Não lembra o Bicho-Folharal, aquele das histórias populares? (que tal ler com os alunos a história antes?)
Eu ainda não sou professor, tenho certeza que preciso aprender muito ainda para saber apresentar futuros alunos aos livros, mas amor por poesia já tenho, e acho que é um primeiro passo. E, também, é claro que não sou a favor de aulas-cirúrgicas, em que poemas são destrinchados e contabilizados como se fossem coisas óbvias. Poesia é pra se curtir, e só. Mas quem curte, indaga, pois tem curiosidade. Assim é que eu vejo o caminho para trabalhar poesia na escola. E, bem, um poema pode (e o bom poema é assim) ter várias interpretações. As crianças, imaginativas como são, são o público ideal para esses poemas bem feitos, multiplicadores de imagens e palavras, encontrados em livros como "O menino camelô".
Enquanto a andorinha
na tarde, sozinha
viaja tristinha,
de flor em flor
voa o beija-flor
num miniventilador
----
Este poema aí de cima é um dos meu preferidos do livro "O menino camelô" (nome de um dos poemas), de Cyro de Mattos. Não preciso dizer, novamente, que o público alvo é o infantojuvenil, mas que é uma poesia destinada pra todo mundo, né? Bem, gostei também de poemas como "Urubu", que é muito simples, quase bobo, se a gente lê com pressa. Mas se para pra pensar... quem seria, quem seria esse "Urubu na valeta/de guarda-chuva e maleta" ou o "Urubu na escola/dá lições de vida?
São poemas divertidos, alguns bem delicados, outros toscos - com tom nonsense (adoro ^^). Mas todos fazem pensar. As ilustrações são do excelente ZeFlávio Teixeira, em tons meio "apagados": marrom, creme, laranja, diferente da habitual enxurrada de cores. Na verdade, trata-se de uma coleção da editora Atual, reunindo quatro títulos de poesia, com projetos gráficos semelhantes. O livro tem dimensões um pouco maiores que o comum; eu gostei.
Outro de que gostei muito:
O AMIGO-FOLHAGEM
Lá vem o Amigo-Folhagem
trazendo na sua bagagem
o verde de todas as folhas,
o verde de todos os mares.
Lá vem o Amigo-Folhagem
dizendo na sua passagem
que não tem medo de leão
e muito menos de visagem.
Lá vai o Amigo-Folhagem
pássaros cantam nas árvores
dois pousam em seus ombros,
o sol desfia ouro pelos ares.
Lá vai o Amigo-Folhagem
na direção da floresta,
leva bichos, Manhã e Noite
como companheiros de viagem.
Tem no Vento um velho amigo
que o acalenta quando dorme.
Selecionei esse poema pela sua delicadeza, e também por achá-lo muito propício para uma discussão sobre a singeleza da poesia [pensando em uma sala de aula], muitas vezes feita de cantos, retalhos e detalhes; um poema bom para nos fazer pensar em que consiste o ofício do poeta, como um poema se constrói. Muitas perguntas podem ser feitas ao poema:
- Por que será que palavras como "Vento", "Manhã" e Noite" estão em maiúsculas?
-Repararam no movimento "Lá vai/Lá vem", sendo que o Amigo Folhagem vai nas duas primeiras estrofes e vem na terceira e na quarta? Por quê, qual a intenção (ou intenções) dele?
- E esse Amigo-Folhagem? Seria algum bicho, alguma planta conhecida? Ou seria alguém inventado pelo poeta? Não lembra o Bicho-Folharal, aquele das histórias populares? (que tal ler com os alunos a história antes?)
Eu ainda não sou professor, tenho certeza que preciso aprender muito ainda para saber apresentar futuros alunos aos livros, mas amor por poesia já tenho, e acho que é um primeiro passo. E, também, é claro que não sou a favor de aulas-cirúrgicas, em que poemas são destrinchados e contabilizados como se fossem coisas óbvias. Poesia é pra se curtir, e só. Mas quem curte, indaga, pois tem curiosidade. Assim é que eu vejo o caminho para trabalhar poesia na escola. E, bem, um poema pode (e o bom poema é assim) ter várias interpretações. As crianças, imaginativas como são, são o público ideal para esses poemas bem feitos, multiplicadores de imagens e palavras, encontrados em livros como "O menino camelô".
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sábado, 19 de junho de 2010
a escrita de Clarice para as crianças
Os livros de Clarice para criança foram escritos, inicialmente, para seus filhos. E, olha, nem parece a clarice, a genial clarice dos livros "adulto": são muito fraquinhas, as histórias. São boas, acho que dá pra fazer uma contação de histórias bem bacana a partir delas [e a própria clarice sugere isso, como se verá], mas deixo claro que eu esperava mais...
Em "O mistério do coelho pensante", que é outro livro dela legal mas não excelente, clarice escreve no início:
"Esta história só serve para criança que simpatiza com coelho. Foi escrita a pedido-ordem de Paulo, quando ele era menor e ainda não tinha descoberto simpatias mais fortes. O mistério do coelho pensante é também minha homenagem a dois coelhos que pertenceram a Pedro e Paulo, meus filhos. [...] Como a história foi escrita para exclusivo uso doméstico, deixei todas as entrelinhas para as explicações orais. Peço desculpas a pais e mães, tios e tias, e avós, pela contribuição forçada que serão obrigados a dar. Mas pelo menos posso garantir, por experiência própria, que a parte oral da história é a melhor dela. Conversar sobre coelho é muito bom. [...]"
A própria autora fala do "uso doméstico" que a história tem. "A mulher que matou os peixes", por exemplo, apresenta uma mulher a defender-se de um 'crime'. "Essa mulher que matou os peixes infelizmente sou eu", começa a voz que parece claramente ser a voz de clarice a defender-se, diante dos filhos, do fato de ter esquecido de alimentar o peixinho de um deles durante uma viagem que fez. Em sua defesa, conta algumas histórias de bichos que teve, para demonstrar que tem muito amor pelos bichos. E conta casos de coelhos, cães, gatos, discorre sobre baratas e lagartixas. No final, explica o porque de ter esquecido de alimentar os peixes e pede perdão a seus interlocutores, ou seja, seus filhos.
E a história, apesar de sem bem simples, dá uma contação legal, eu creio. Quando Clarice fala que "deixou todas as entrelinhas para as explicações orais" naquele livro, o mesmo vale para este aqui: a todo momento ela para a narrativa para questionar seus interlocutores, os leiotores [no caso de uma contação, ou ouvintes]. Pede opiniões, pergunta se conhecem determinada expressão e a explica. Isso é uma boa deixa para os contadores narrarem a história, ao mesmo tempo que dão espaço para as crianças explanarem suas ideias. Nem toda história se ajeita bem a essas interrupções dos ouvintes, mas creio que nessa cai bem. Quanto à história em si, esta me parece que fica fraquinha. É boa? é. mas eu esperava mais... Não consigo definir bem o porquê, parece que falta algo, apesar das boas reflexões sobre pessoas e animais. há algo de frágil em seu narrar, algo que não encontramos nos seus romances adultos, que são "dura escritura", como diz uma personagem de "Água Viva".
Ainda sim, recomendo!
sábado, 12 de junho de 2010
É hora de história!
Achei bem bacana esse livro. Primeiro porque acho uma graça as ilustrações da Mariana Massarani, sou fã confesso do seu trabalho. Aliás, tenho reparado que se tem uma coisa que ela desenha bem é criança: parece uma especialidade dela retratar a esperteza e a simpatia que as crianças inspiram quando estão felizes. Gostei não apenas pela interpretação de Massarani, mas pelas histórias também, é claro. O livro reúne 10 histórias de autores diferentes, retiradas de livros já publicados.
Alguns contos foram retirados integralmente, como "Fada Cisco Quase Nada", de Sylvia Orthoff; outros, apenas um excerto, como "Cinderela", trecho do livro "Reinações de Narizinho", de Monteiro Lobato. A intenção, nesse último caso, é despertar a vontade de ler toda essa história, de buscar o livro integral para conhecer o resto. Pra mim, tá beleza. Será que as crianças também apreciam esse jogo? Tomara. Em mim, deu certo: adorei principalmente as histórias "Tia Delica", de Ronald Simões Coelho, e "O cachorro e a pulga", de Liliana e Michelle Lacoca; livros que eu não conhecia e agora vou buscar em suas formas originais. Um problema que há nesses casos é a limitação: não há o projeto editorial amplo e cuidadoso (que é muito importante, sobretudo na literatura infantojuvenil!) que há nos livros em que os contos foram coletados. O que antes ocupava todo um livro (Fada Cisco Quase Nada, por exemplo) é transformado em 2 ou 3 páginas, limitando, inclusive, a interpretação de Massarani para as histórias. Uma defesa para isso está na intenção dos editores - explicitada na contra-capa - de que seja um livro para os pais e professores contarem histórias aos pequenos. Mas como livro é feito, antes de tudo, pra ser pego, lido e remexido pelas crianças, achei essa observação importante.
Mas... se pensarmos nesse livro como um convite a ler e ouvir histórias, aí ficará tudo bem. Para conferir as histórias em sua totalidade e beleza, basta que busquemos os livros de onde foram extraídos. Um bom livro.
sábado, 5 de junho de 2010
Eu vi. E adorei!
Maravilhoso. Esse livro contém poemas em prosa, sem as rimas costumeiras. E ficou bom! Bom mesmo! Aqui José Paulo Paes assume a voz de uma criança, que diz o que ela acha de certas coisas (‘vejam como sei escrever’ significa ‘vejam minhas idéias, porque eu as tenho e elas são ótimas, viu!’). Fala de televisão, esporte, universo, água (“No deserto não tem água / Por isso o deserto é uma plantação que não deu certo /Quem mora no deserto é desertor”), zoológico e fala até da própria infância. Aliás, este da infância foi um dos poemas de que mais gostei. Muito bonito.
E o poeta assume com naturalidade essa voz de criança, de um jeito que só quem mantém viva a criança que foi no passado (e ainda é, oras) consegue fazer. Falando sobre televisão, o poeta-menino diz: “Não gosto de programas infantis com gente grande fingindo de criança.” E é aí que mora a diferença entre a boa e a má poesia infantil também. José Paulo Paes não se finge de criança; ele é. É preciso lembrar também que o livro é belissimamente ilustrado por Alex Cercany, que faz poesia com cores e traços.
Paes é doce, delicado, simples. Mas sem ser ingênuo, piegas ou simplista. Pelo contrário, ele vai contra isso com sua poesia que faz pensar. São imagens que desmontam lugares-comuns. Um exemplo é o início do poema “Zoológico”:
“Zoológico é uma penitenciária de bichos.” Logo de início, uma frase para quebrar a ideia de embelezamento do zoológico que, antes de tudo, é um lugar onde os bichos não têm sua liberdade.
“Vejam como sei escrever” é pura poesia. Uma aula de poesia para crianças (e para adultos inteligentes também – como sugere o título de outro de seus ótimos livros). José Paulo Paes é um poeta de mão cheia. Mão cheia de mil palavras de brincar.
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domingo, 2 de maio de 2010
o trabalho de Eva Furnari
Hoje em dia, quando a variedade de obras é imensa, quando traços cortantes, multicoloridos, velozes e abstratos preenchem as páginas dos livros, as obras de Eva Furnari podem soar um pouco acanhadas, simplórias, talvez. Mas é preciso reconhecer o trabalho dessa autora e ilustradora, que é uma das mais representativas no Brasil, e o foi sobretudo na década de 80 (este livro da foto ganhou o prêmio de melhor livro sem texto da FNLIJ em 1982). São traços arredondados, ternos, muito simples é verdade. Daí o contraste com a rica produção de ilustrações que temos hoje, um tempo que a ilustração de uma página é considerada uma obra de arte, de tão ricamente elaborada. Mas Furnari consegue, com seus traços simples, brincar com o inesperado, fazer um humor, simples como as formas de seus personagens. Eva, autora de outros livros sem imagens como o "Traquinagens e estripulias" também aposta nos detalhes. Às vezes, num cantinho da página, o leitora encontra um detalhe novo, que dá graça à cena, ou às vezes até gera uma história, que corre em paralelo com a principal (vide o casal de pássaros no telhado da casa de "Traquinagens").
Além de ilustrar, Furnari também escreve muitos livros. Lembro-me de um, o "Suriléa-mãe-monstrinha", que contava a história de uma mãe que tinha 2 cabeças: precisava para conseguir cuidar da casa, dos filhos, e da sua rotina de trabalho. A confusão que é lidar com essas duas cabeças em torno de 2 crianças que a disputam é a forma que Furnari usou para abordar o problema da mãe que trabalha e ainda precisa cuidar da casa.
Simples e terna, a ilustração de Furnari. Mas sempre a serviço da boa literatura.
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quarta-feira, 21 de abril de 2010
Fazendo Ana Paz
Adorei Ana Paz!
O livro é narrado por uma escritora que conta sua relação com alguns de seus personagens: ora é a busca dela por suas criações, e ora são os personagens que vão atrás dela. Belo drama criativo: os personagens surgem de repente, mudam tudo o que a escritora planejava pra seu livro, às vezes somem (para desespero da escritora) e às vezes ressurgem, já bem mudados. Tem muito de Lygia nesse livro aqui. Todo livro dela é assim, né? Mas aqui temos muito da Lygia-escritora, em seus momentos de criação. Afinal, a narradora dessa história é um alter-ego de Lygia. Três personagens centrais guiam a história. mas não se trata de um caminho linear, nem "guiar" é o verbo correto. Três personagens que saltam da categoria de meros persoagens estáticos, à espera da sanção da autora quanto a seus destinos. Três personagens que tumultuam o caminho da história, e que fazem deste "Ana Paz" um livro dfragmentos, de tentativas. Vários pedaços de histórias, que juntas, numa bricolagem (acho que posso dizer isso), resultam numa história só, muito ampla, que abrage narrador, personagens e escritor, criador e criaturas que se avizinham.
Quanto à linguagem... ah, é a velha linguagem bojunguiana de sempre: velha, no sentido de conhecida, de habitual, de caseira, porque a linguagem de bojunga é uma delícia (eu sempre digo isso), moderna, rápida, um samba (lembrei de "Os colegas" agora), um ritmo sem-igual.
Curioso notar que o cenário escolhido ara as três grandes personagens (criadas pela narradora, pois se fossêmos falar em grandes personagens do livro "Fazendo Ana Paz", seriam 4, pois incluiríamos a narradora, às voltas com sua história eteramente em construção), o cenário escolhido é uma casa. Nesse caso, trata-se da casa onde Ana Paz (todas as três personagens são Ana Paz, mas em momentos diferentes da vida: criança, jovem, idosa) passou sua tumultuada infância, marcada por lacunas e fragmentos (e veja! não é este livro marcado por fragmentos e lacunas?). Nessa casa, as três Ana Paz se encontram. É curioso porque não é a primeira vez que Lygia enche uma casa de simbolismo, que Lygia usa uma casa como metáfora para algo dolorosamente humano:
Em "A casa da Madrinha", outro livro da autora, protagonizado pelo menino Alexandre, a casa representa uma fuga da realidade dura para a fantasia. Lá a casa é um lugar íntimo, onde se realizam os desejos que mal conseguem ser esboçados na vida difícil do menino. Aqui, em "Fazendo Ana Paz", a imagem da casa representa a volta ao passado, à infância, à juventude. Essa é a história de Bojunga com menos linearidade na narrativa, justamente pelos fragmentos que falei há pouco; e mais ainda, justamente pela intenção da autora: uma volta ao passado para reconstruir os fragmentos. Reconstrui a casa. Reconstruir o tempo! Não se trata de uma volta para a contemplação; é uma volta para acertar as contas com o passado, consigo mesmo. Novamente, Lygia usa a "casa" como um lugar íntimo, humano, dolorasamente humano.
sábado, 3 de abril de 2010
Tão distante, tão próximos..
Ah, gostei muito dessa história da Lia Zatz. Muito simples e muito boa. Conta a história de João, um homem comum, de hábitos comuns, como muitos. E ao mesmo tempo, conta a história do Sultão, homem rico, que tem tudo o que deseja, como poucos.
O jeito que as duas histórias são contadas é muito original: na mesma página, é contado um pouco de cada um. Um pequeno texto sobre um e, do avesso, de cabeça pra baixo, um pequeno texto sobre o outro. Na página ao lado, a ilustração é a mesma para descrever os dois textos: de um lado ilustra o texto de um, virando de cabeça pra baixo, a ilustração se refere ao outro texto. Dessa forma original, reforça-se o contraste do título, mas paradoalmente, em vez de distanciá-los, só os aproxima. Afinal, suas histórias dividem a mesma página, e temos um só desenho servindo pras duas histórias, a princípio tão distintas.
E é essa distinção, que no início parece gigante, separada pelo dinheiro e pelas origens radicalmente diferentes dos dois personagens, que o leitor vai percebendo, ao longo, que nem é tão radical assim... e é isso que os dois personagens percebem ao final do livro. Tão humanos, os dois...
O jeito que as duas histórias são contadas é muito original: na mesma página, é contado um pouco de cada um. Um pequeno texto sobre um e, do avesso, de cabeça pra baixo, um pequeno texto sobre o outro. Na página ao lado, a ilustração é a mesma para descrever os dois textos: de um lado ilustra o texto de um, virando de cabeça pra baixo, a ilustração se refere ao outro texto. Dessa forma original, reforça-se o contraste do título, mas paradoalmente, em vez de distanciá-los, só os aproxima. Afinal, suas histórias dividem a mesma página, e temos um só desenho servindo pras duas histórias, a princípio tão distintas.
E é essa distinção, que no início parece gigante, separada pelo dinheiro e pelas origens radicalmente diferentes dos dois personagens, que o leitor vai percebendo, ao longo, que nem é tão radical assim... e é isso que os dois personagens percebem ao final do livro. Tão humanos, os dois...
sábado, 20 de março de 2010
Adeus conto de fadas
(minicontos juvenis)
O livro de literatura infanto-juvenil de minicontos de Leonardo Brasiliense retrata diversas situações do cotidiano juvenil e um estilo diferenciado na composição da literatura. O tradicional conto foi modificado com uma característica bem autoral. Redigido diversas vezes apenas, algumas linhas de emoção, ironia e narração.
A busca pelas rotinas e fatos incrivelmente relevantes de adolescente como: o desconhecido que tira o BV da menina, a primeira vez, os Xavecos de cinema, as brigas familiares foram traduzidas nas suas ironias, tornando um livro agradável de ler.
Além do livro, Leonardo conta com um site onde estão algumas de suas obras e minicontos. http://www.leonardobrasiliense.com.br/
Alguns minicontos: Adeus conto de fadas, de Leonardo Brasiliense
To Pra Matar
Mas não sei quem nem por quê.
A psicóloga
Aquela mulher me olhou como se me conhecesse mais que eu mesmo. Será que perdi alguma coisa?
Xaveco
No escurinho do cinema, eu sentado ao lado da maior gata. Ela prestava atenção na telona como se fosse engolir as legendas. Não resisti e mandei ver:
- Aí, meu nome é Roberto.
E ela nada.
- Já te vi lá no shopping, de longe.
E ela, nada. Mesmo assim continuei:
- E sabe que assim, de perto, tu é ainda mais bonita.
E ela, nada.
- Aí, me irritei:
- Pô, gatinha, tu é surda ?
E ela era.
quarta-feira, 17 de março de 2010
Phone Book.. humm
Phone Book
Proposta muito inteligente essa aí exposta nesse link. As formas de interação que essa nova tecnologia permite são muito bem-vindas! Mas tem uma coisa... o phonebook deveria se chamar phonegame. Nesse exemplo, o livro foi um mero suporte, como uma televisão. As ilustrações pouco foram aproveitadas. Na verdade, apenas as dimensões do objeto livro foram aproveitadas. É uma boa? É. Mas vamos fazer uma coisa bacana. ;)
PS: isso me lembrou que não sei postar vídos do Youtube em postagens! Bah, primeira vez que tentei. Vou descobrir. :P
Proposta muito inteligente essa aí exposta nesse link. As formas de interação que essa nova tecnologia permite são muito bem-vindas! Mas tem uma coisa... o phonebook deveria se chamar phonegame. Nesse exemplo, o livro foi um mero suporte, como uma televisão. As ilustrações pouco foram aproveitadas. Na verdade, apenas as dimensões do objeto livro foram aproveitadas. É uma boa? É. Mas vamos fazer uma coisa bacana. ;)
PS: isso me lembrou que não sei postar vídos do Youtube em postagens! Bah, primeira vez que tentei. Vou descobrir. :P
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segunda-feira, 8 de março de 2010
alô, ortografia!
Olha só... estava lendo a Ler & Cia, aquele catálogo das Livrarias Curitiba, que entre as propagandas dos seus livros, tem uns textos, geralmente resenhas de livros ou algo relacionado a algum autor em especial. Nada muito interessante ou profundo, mas sempre dá pra pegar alguma sugestão de leitura. Aí, nessa edição Março-Abril (que não tem nada de bom. Nunca vi um catálogo tão ruim como desse bimestre), tem um "comentário" sobre a obra infantojuvenil de Monteiro Lobato, em virtude do aniversário de 90 anos da publicação de seu primeiro livro "A menina do nariz arrebitado". Pois bem, texto muito simples, não-assinado, contendo muitos dados superficiais, mas que são úteis pra quem não conhece o Lobato. Enfim, nem é disso que quero falar. Apenas de uma coisa que este texto me lembrou: as mudanças ortográficas, recém postas em ação.
É que estranhei a palavra "infantojuvenil", assim, sem hífen. Julguei tratar-se de um erro tipográfico no início, mas sua repetição me fez associar isso à nova ortografia, que pouco estudei. Aliás, não gostei nem um pouco dessas mudanças, pois a meu ver, sua intenção mor - diminuir as dificuldades e incoerências de um sistema de fixação de normas ortográficas - foi não foi atingida. Coisas melhoraram, coisas pioraram. E no fim, após tanta polêmica, parece que nada mudou. Pois o hífen? Melhorou com aquele tanto de regras absurdas? todos usaremos corretamente agora? pff
Mas enfim, também não é disso que quero falar. Quero apenas observar que essa palavra, infantojuvenil, que vem usada em quase todas as postagens desse blog, já que eu e daia gostamos de ler e escrever sobre esses livros, essa palavra tem uma nova grafia. Agora é tratar de alterar os marcadores e as postagens, bah! E farei isso maldizendo, entredentes, os responsáveis por essa reforma ortográfica de meia tigela ou tijela, eu sei lá, tô de saco cheio dessa ortografia bisonha. Nhé.
É que estranhei a palavra "infantojuvenil", assim, sem hífen. Julguei tratar-se de um erro tipográfico no início, mas sua repetição me fez associar isso à nova ortografia, que pouco estudei. Aliás, não gostei nem um pouco dessas mudanças, pois a meu ver, sua intenção mor - diminuir as dificuldades e incoerências de um sistema de fixação de normas ortográficas - foi não foi atingida. Coisas melhoraram, coisas pioraram. E no fim, após tanta polêmica, parece que nada mudou. Pois o hífen? Melhorou com aquele tanto de regras absurdas? todos usaremos corretamente agora? pff
Mas enfim, também não é disso que quero falar. Quero apenas observar que essa palavra, infantojuvenil, que vem usada em quase todas as postagens desse blog, já que eu e daia gostamos de ler e escrever sobre esses livros, essa palavra tem uma nova grafia. Agora é tratar de alterar os marcadores e as postagens, bah! E farei isso maldizendo, entredentes, os responsáveis por essa reforma ortográfica de meia tigela ou tijela, eu sei lá, tô de saco cheio dessa ortografia bisonha. Nhé.
domingo, 7 de fevereiro de 2010
Um pouco do trabalho de André Neves
André Neves é um escritor e ilustrador com alguns prêmios na bagagem. Recentemente, tive a oportunidade de conhecer um pouco mais de seu trabalho, lendo 3 livros em que ele é o autor, seja em parceria ou não. O primeiro deles é "Sapato Furado". Este livro reúne poemas e prosas curtas do escritor gaúcho Mário Quintana. É uma antologia (a maioria dos trechos vem do seu maravilhoso "Caderno H") para apresentar Quintana aos mais jovens. O texto por si é lindo, e Neves ainda acrescente ao livro seu grande talento para ilustrar. Moderno, Neves usa e abusa de recortes e colagens: são fotos, selos de cartas, azulejos e jornais. Aliás, o uso de jornais parece ser uma marca pessoal. Nos 3 livros que li, há sempre um recorte de jornal no cantinho de alguma ilustração.
Outro livro que André Neves ilustrou foi "Laranja Pera Couve Manteiga", cujo texto é de Maria Amália Camargo. O que gosto nesse livro, como vocês podem reparar, é o modo como a edição apresenta os autores: Amália e André, lado a lado. A maioria dos livros infanto-juvenis ainda põe o ilustrador em posição secundária, como se a iustração fosse um mero complemento do texto, e não é bem assim. Perdoem o clichê, mas texto e imagem são suas linguagens que dialogam, cada uma contando a história a seu modo. A união destas duas forma o belo livro que o leitor tem em mãos. Quanto ao livro, este é muito bom: em rimas, Amália retrata com muito bom-humor um dia de feira. Para isso, ela brinca com as palavras, especialmente os substantivos compostos, como aqueles do título do livro. Essa brincadeira inteligente, esse jogo com palavras, é sinônimo de bom livro quando falamos em Literatura Infanto-Juvenil. Em resumo, este é um livro muito bem-humorado, ilustrado com a mesma graça com que foi escrito.
Já em "A caligrafia de Dona Sofia", os créditos são todos de André Neves: ele escreve e ilustra essa história carregada de poesia. Dona Sofia é uma senhora que mora, sozinha, no alto de um morro de um pequeno vilarejo. Sua grande distração é sua paixão pela poesia. Sua casa é toda enfeitada, cheio de poemas escritos na parede. Eis a oportunidade ideal para André (que também é poeta) encher as páginas com belíssimos versos: é Ronald de Carvalho, Pessoa, Drummond, Lorca, Emily Dickinson e tantos outros. Dona Sofia também gosta de distribuir poesias à população, em pequenos cartõezinhos, com ajuda do carteiro, seu Ananias, que se apaixona pela poesia através da simpática senhora. Mas além de todos esses versos, há a poesia da história que Neves conta, a cumplicidade do carteiro Ananias e da Dona Sofia, ambos amantes das palavras. Essa amizade deságua num bonito final, que nos recorda que, além da poesia dos grandes artistas, dos grandes escritores, há a poesia nas coisas simples, nas pessoas simples. E isso nos lembra os versos de outro grande poeta, Oswald de Andrade: "Há poesia/Na dor/Na flor/No beija-flor/No elevador" Esse "A caligrafia de Dona Sofia" é um livro cheio de poesia, e que pede ainda mais poesia. Recomendadíssimo, como são recomendados os outros dois títulos citados nessa postagem.
Bem, e para quem deseja conhecer um pouco mais do trabalho dele, há o seu blog, o Confabulando Imagens. ^^
Outro livro que André Neves ilustrou foi "Laranja Pera Couve Manteiga", cujo texto é de Maria Amália Camargo. O que gosto nesse livro, como vocês podem reparar, é o modo como a edição apresenta os autores: Amália e André, lado a lado. A maioria dos livros infanto-juvenis ainda põe o ilustrador em posição secundária, como se a iustração fosse um mero complemento do texto, e não é bem assim. Perdoem o clichê, mas texto e imagem são suas linguagens que dialogam, cada uma contando a história a seu modo. A união destas duas forma o belo livro que o leitor tem em mãos. Quanto ao livro, este é muito bom: em rimas, Amália retrata com muito bom-humor um dia de feira. Para isso, ela brinca com as palavras, especialmente os substantivos compostos, como aqueles do título do livro. Essa brincadeira inteligente, esse jogo com palavras, é sinônimo de bom livro quando falamos em Literatura Infanto-Juvenil. Em resumo, este é um livro muito bem-humorado, ilustrado com a mesma graça com que foi escrito.
Já em "A caligrafia de Dona Sofia", os créditos são todos de André Neves: ele escreve e ilustra essa história carregada de poesia. Dona Sofia é uma senhora que mora, sozinha, no alto de um morro de um pequeno vilarejo. Sua grande distração é sua paixão pela poesia. Sua casa é toda enfeitada, cheio de poemas escritos na parede. Eis a oportunidade ideal para André (que também é poeta) encher as páginas com belíssimos versos: é Ronald de Carvalho, Pessoa, Drummond, Lorca, Emily Dickinson e tantos outros. Dona Sofia também gosta de distribuir poesias à população, em pequenos cartõezinhos, com ajuda do carteiro, seu Ananias, que se apaixona pela poesia através da simpática senhora. Mas além de todos esses versos, há a poesia da história que Neves conta, a cumplicidade do carteiro Ananias e da Dona Sofia, ambos amantes das palavras. Essa amizade deságua num bonito final, que nos recorda que, além da poesia dos grandes artistas, dos grandes escritores, há a poesia nas coisas simples, nas pessoas simples. E isso nos lembra os versos de outro grande poeta, Oswald de Andrade: "Há poesia/Na dor/Na flor/No beija-flor/No elevador" Esse "A caligrafia de Dona Sofia" é um livro cheio de poesia, e que pede ainda mais poesia. Recomendadíssimo, como são recomendados os outros dois títulos citados nessa postagem.
Bem, e para quem deseja conhecer um pouco mais do trabalho dele, há o seu blog, o Confabulando Imagens. ^^
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domingo, 31 de janeiro de 2010
A vida íntima de Fernando Pessoa
Se existisse (calma, é só uma brincadeira, não um desejo) um programa desses de fofocas que cuidasse da vida pessoal dos escritores, ele pouco citaria Fernando Pessoa, o fechado Fernando. Numa das cartas à sua amada, Ophlia (com quem teve um relacionamento instável, que não teve sucesso, marcado por uma interessante troca de cartas), diz: "a minha vida gira em torno de minha obra literária - boa ou má, que seja, ou possa ser. Tudo o mais na vida tem para mim um interesse secundário." E a busca da felicidade amorosa do poeta, resume-se a esse malogrado relacionamento. Tudo o mais de sua vida é sua obra. Fernando via limpidamente sua sina. Se existisse o programa dos escritores, certamente seria composto por exageradas investigações amorosas: Henry Miller & Anais Nin, Sartre & Beauvior, Rimbaud & Verlaine. Ou quem sabe, perseguições aos escritores recolhidos, afastados da correria do mundo, como Nassar ou (oh, ele morreu) Salinger. Ou ainda, devanear sobre as possíveis causas que levaram gente como Hemingway ou Woolf ao suícídio. E o Euclides da Cunha, então? Amanhã, reportagem especial. Dossiê Euclides. Não percam!
Bem, voltando ao que interessa, posto abaixo uma dessas cartas. Retiro ela de "Quando fui outro", uma antologia de poemas, cartas e trechos de prosa (do maravilhoso Livro do Desassossego) deste que é o meu poeta preferido. Carta dele para seu Terrível Bébé, Ophélia Queiroz. Essa é a carta de que mais gosto. Nem vou dizer por que. Apenas leiam.
TERRÍVEL BÉBÉ
Gosto das suas cartas, que são meiguinhas, e também gosto de si, que é meiguinha também. E é bombom, e é vespa e é mel, que é das abelhas e não das vespas, e tudo está certo, e o bebé deve escrever-me sempre, mesmo que não escreva, que é sempre, e eu estou triste, e sou maluco, e ninguém gosta de mim, e também porque que havia de gostar, e isso mesmo, e torna tudo ao princípio, e parece-me que ainda lhe telefono hoje, e gostava de lhe dar um beijinho na boca, com exactidão e gulodice e comer-lhe a boca e comer os beijinhos que tivesse lá escondidos e encostar-me ao seu ombro e escorregar para a ternura dos pombinhos, e pedir-lhe desculpa, e a desculpa ser a fingir, e tornar muitas vezes, e ponto final até recomeçar e porque é que a Ofelinha gosta de um meliante e de um cevado e de um javardo e de um indivíduo com ventas de contador de gás e expressão geral de não estar ali mas na pia da casa ao lado, e exactamente, e enfim, e vou acabar porque estou doido, e estive sempre, e é de nascença, que é como quem diz desde que nasci, e eu gostava que a Bebé fosse uma boneca minha, e eu fazia como uma criança, despia-a e o papel acaba aqui mesmo, e isto parece impossível ser escrito por um ente humano mas é escrito por mim.
Fernando
09-10-1929
PS: *___*
Bem, voltando ao que interessa, posto abaixo uma dessas cartas. Retiro ela de "Quando fui outro", uma antologia de poemas, cartas e trechos de prosa (do maravilhoso Livro do Desassossego) deste que é o meu poeta preferido. Carta dele para seu Terrível Bébé, Ophélia Queiroz. Essa é a carta de que mais gosto. Nem vou dizer por que. Apenas leiam.
TERRÍVEL BÉBÉ
Gosto das suas cartas, que são meiguinhas, e também gosto de si, que é meiguinha também. E é bombom, e é vespa e é mel, que é das abelhas e não das vespas, e tudo está certo, e o bebé deve escrever-me sempre, mesmo que não escreva, que é sempre, e eu estou triste, e sou maluco, e ninguém gosta de mim, e também porque que havia de gostar, e isso mesmo, e torna tudo ao princípio, e parece-me que ainda lhe telefono hoje, e gostava de lhe dar um beijinho na boca, com exactidão e gulodice e comer-lhe a boca e comer os beijinhos que tivesse lá escondidos e encostar-me ao seu ombro e escorregar para a ternura dos pombinhos, e pedir-lhe desculpa, e a desculpa ser a fingir, e tornar muitas vezes, e ponto final até recomeçar e porque é que a Ofelinha gosta de um meliante e de um cevado e de um javardo e de um indivíduo com ventas de contador de gás e expressão geral de não estar ali mas na pia da casa ao lado, e exactamente, e enfim, e vou acabar porque estou doido, e estive sempre, e é de nascença, que é como quem diz desde que nasci, e eu gostava que a Bebé fosse uma boneca minha, e eu fazia como uma criança, despia-a e o papel acaba aqui mesmo, e isto parece impossível ser escrito por um ente humano mas é escrito por mim.
Fernando
09-10-1929
PS: *___*
segunda-feira, 25 de janeiro de 2010
Um pouco mais do trabalho de Carla Caffé
Bem, Carla Caffé é uma arquiteta, cujo livro "Avenida Paulista", foi citado por mim numa postagem recente, em que eu discutia os conceitos de literatura adulta e infanto-juvenil. Falei do livro, que adorei, mas não fui muito longe na postagem. Afinal, falo de um livro exclusivamente de imagens e não posto nenhuma? Maldade, né. Na verdade, eu nem iria postar, mas recentemente vi no twitter da editora Cosac Naify, que eles estavam disponibilizando alguns desenhos de Caffé que não entraram no livro. O download está disponível lá no Blog da Cosac Naify, que por sinal, é um espaço muito rico. Recomendo a visita. (lembrando que há o site da editora, e há o seu blog. Na verdade, recomendo os dois ^^)
Bem, para quem quiser conferir, eis aí um pouco do trabalho de Carla Caffé. Eu adorei o olhar dela sobre Sampa.
Bem, para quem quiser conferir, eis aí um pouco do trabalho de Carla Caffé. Eu adorei o olhar dela sobre Sampa.
quinta-feira, 21 de janeiro de 2010
Onda, de Suzy Lee
Mais uma narrativa visual encantadora. A edição é da Cosac Naify, linda, à altura do trabalho da autora. Nesse livro, a sul-coreana Suzy Lee nos leva à beira-mar para acompanhar as descobertas de uma criança: o medo da assustadora onda, a curiosidade, o enfrentamento dela, o desdenhar (para ser surpreendida por um grande "caldo"). Eis uma belíssima metáfora para a infância, essa época de descobertas, feitas de quedas, traquinagens e sustos. À volta da menina, um grupo de gaivotas acompanha a menina no seu ritmo: enfrentam o mar com ela, temem o mar com ela, assustam-se com ela. Pássaro e criança: dois símbolos da liberdade, do desejo de voar, desejo de encontrar o horizonte.. que, vocês sabem, se esconde lá atrás... das ondas.
=)
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domingo, 17 de janeiro de 2010
algumas palavras sobre literatura adultantil
O que é Literatura Infantil, Infanto-Juvenil? Pergunta difícil. A fronteira entre essa literatura e a adulta existe? Sim. E não.
Bem, é claro que para uma criança, um ser em formação, não faz sentido (geralmente) dar a ela a Odisséia, de Homero, ou quem sabe um romance de Flaubert ou Stendhal. São leituras para adultos, seres já completamente formados fisica e psicologicamente, com experiência de vida, dispostos a refletir sobre suas próprias existências e concepções. O oposto, porém, não ocorre. Uma boa história para crianças, agrada sempre aos adultos. O adulto se encanta com livros de Monteiro Lobato, Ana Maria Machado, Lygia Bojunga, Roger Mello, Marina Colassanti e tantos outros porque encontram nesses livros uma riqueza de ideias e e sentimentos tão grandes como nos livros de literatura adulta. A literatura, a obra literária, é universal: fala a todos os homens, independente de sua classe, religião ou idade. Assim, ao mesmo que existe essa fronteira, puramente lógica, entre literatura adulta e infanto-juvenil; ela também não existe. Outro caso que pode ser citado nessa discussão, é daquelas obras adultas, que logo caíram no gosto das crianças. Livros como As viagens de Gulliver e Robinson Crusoé são exemplos. Melhor mesmo é dizer que não existe tal fronteira.
E essa discussão nunca deixa de ser pertinente. Dia desses, uma obra reavivou-a em mim: "Avenida Paulista", da arquiteta Carla Caffé. A obra, lançada em 2009 numa co-edição da Cosac Naify com o SESC-SP, é belíssima e retrata, apenas com desenhos, a efervescente avenida paulistana. Com sua experiência de arquiteta, Caffé revisita os pontos turísticos, os prédios e esquinas famosos da avenida, num jogo de linhas, cores e curvas. Simplesmente lindo, o livro. Nos desenhos da autora, sente-se a harmonia desencontrada, oxímoro ideal para definir a paisagem dessa avenida e - why not? - de toda a metrópole paulistana. E este livro, traz em sua ficha catalográfica, a marcação "Literatura Infanto-Juvenil". E aí? Adulta? Infanto-Juvenil? Sim e sim. Obra Universal.
Pra resolver isso, é simples. Arrumem as fichas catalográficas. Literatura Adultantil. Pronto! :)
PS: aos curiosos, há um vídeo no youtube, em que Carla caffé fala um pouco mais sobre o livro Avenida Paulista.
PS: achei umas palavras muito legais do Mia Couto, famoso romancista moçambicano, que também se aventurou a escrever para os mais jovens. No prefácio do seu "O gato e o escuro" (que é uma história linda) , Couto diz: "Não sei se alguém pode fazer livros 'para' crianças. Na verdade, ninguém se apresenta como fazedor de livros 'para' adultos. O que me encanta no acto da escrita é surpreender tanto a escrita como a linguagem em estado de infância." Taí. ^^
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quinta-feira, 7 de janeiro de 2010
"A toalha vermelha", de Fernando Vilela
"A toalha vermelha" é uma bela narrativa visual de Fernando Vilela. Apenas com ilustrações, o autor nos leva a uma viagem pelo planeta Terra. Um pescador brasileiro deixa cair uma toalha vermelha ao mar. Esta vai afundando, afundando, passa por corais, arraias, tubarões, adentra a um canal, cruza com submarinos, mergulhadores, peixes, baleias´, até chegar ao outro lado do mundo. O mar da China com seus pescadores. Toda essa viagem é contada através das belas ilustrações de Vilela. Ao final, a toalha vai para num barco de pescadores chineses, servindo como bandeira. Um objeto que liga o pescador brasileiro, um homem, com o pescador chinês. Os homens estão ligados. Homens são todos iguais, espalhados por esse mundo. É o que me vem á cabeça quando leio tal narrativa.
Interessante reparar que esse livro nada tem de despretensioso. Ao final do livro, nos agradecimentos, Vilela diz : "agradeço ao amigo Nicolas Wahba, pelo apoio e pela ajuda na pesquisa; ao cinegrafista Lawrence Wahba e suas fantásticas e inspiradoras imagens submarinas; à querida tia Maria Dulce P. V. Tanimoto, pelos cálculos de latitude e longitude para acertarmos a trajetória da toalha sobre a Terra [...] Por tais palavras, podemos notar que há uma pesquisa por trás de uma simples história visual.
E essa história é lindíssima, como são as narrativas visuais feitas por artistas competentes como Vilela, Roger Mello, Juarez Machado, Ângela Lago entre outros. O que é curioso em "A toalha vermelha" é que trata-se de mais uma história circular, em que a primeira e a última ilustração são iguais: um ciclo. Esse esquema tem se repetido. Livros ótimos como "Cena de Rua" (Angela Lago) e "Ida e Volta" (do pioneiro Juarez Machado) também apresentam esse esquema. Mas isso não significa que não seja criativa. Muito pelo contrário. Cada história tem as suas particularidades e são muito diferentes.
Destaca-se também o bom projeto gráfico da editora Brinque-Book. Na capa tem-se o título da obra, "a toalha vermelha", e na contra-capa, o mesmo título, mas em chinês. Com isso, a edição brinca com o texto, fazendo a mesma viagem que a tolha vermelha. Esse detalhe que parece pequeno, tem ganhado cada vez mais força: nos livros infanto-juvenis, um bom projeto gráfico é fundamental, pois ele soma-se ao texto, enriquecendo a leitura.
Para adultos e crianças, esse "a toalha vermelha" é um livro altamente recomendável. Boa leitura e boa viagem.
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segunda-feira, 28 de dezembro de 2009
um livro sobre o amor
"A odalisca e o elefante" é a primeira incursão da brasileira Pauline Alphen na ficção. Antes disso, ela havia publicado dois livros de poesia. E que estréia! Eis um livro maravilhoso, que me surpreendeu. Uma linguagem poética rara, um estilo único.
Trata-se da história de Leila, a odalisquinha; e Hati, o elefante branco. Leila é uma aprendiz de odalisca. Toda sua infância é voltada para ensaio e preparação ao grande dia em que as jovens são apresentadas ao sultão. E Hati é um presente que o déspota ganha de um aliado. O elefante é posto no jardim do palácio. Lá ele tenta entender seus misteriosos sonhos.
O sultão, conhecido por sua soberba e despotismo, apaixona-se pela jovem. Elege-a como sua contadora de histórias. Sua Sherazade. Logo a encantadora Leila cai num abatimento estranho. Estranho como os sonhos de Hati. seria uma doença? o sultão se desespera. Ninguém explica. O abatimento que leila sente é um vazio. Uma ausência. Logo se descobre: é amor.
Este é um livro sobre o amor, esse tema universal. E a universalidade do amor nos leva a uma das marcas do estilo de Alphen: todo o seu texto é permeado por outros textos. A autora dialoga com tantos outros autores. No meio da fala da narradora, ou na fala de um personagem, o leitor reconhece passagens de outros livros e músicas. São trechos de Raul Seixas, Cartola, Caetano Veloso, Tim Mais, Julio Cortazár, Mário de Andrade (o Sultão diz, em dado momento, "Ai, que preguiça!"). Além de estabelecer dialógo com outras passagens, a autora faz referências a tantas outras histórias, como a de Ícaro, a de Sherazade, a de tristão e Isolda. Enfim, com todas essas referências, a autora nos lembra o quanto o amor é um tema inesgotável. São várias histórias que se unem para um mesmo motivo: falar de amor.
Uma noite, os pensamentos de Hati, no jardim; e Leila, na janela da torre, se encontram. O vazio é preenchido. Os sonhos esclarecidos. Eles se amam. Hati, recorda-se do passado e relembra Leila: eles foram amantes. Um dia, uma maldição os condenou a viverem separados por 999 vidas. Foram Romeu e Julieta. Foram Ícaro e Sol. Tristão e Isolda. 998 encontros malogrados viveram os amantes. E agora, no encontro de número 999, ei-los, a odalisca e o elefante. Tão distantes e tão próximos.
Além de ser um livro sobre o amor, afeto profundo entre dois seres, o livro de Pauline Alphen é sobre o amor em contar histórias. E ela nos conta uma história linda. Embala o leitor: legítima Sherazade.
PS: sei que nunca conseguirei delinear bem o estilo da autora numa resenha. Por isso, posto 2 trechos do livro. leiam e entendem por que me apaixonei por esse livro. Ah, um dos trechos é o final do livro. As últimas linhas, quando Hati e Leila, os amantes esclarecidos, vão enfim viverem seu amor. Viva o Spoiler! \o/
"[Hati] Sonhou com um homem irado que dirigia um carro puxado por dois cavalos.
Havia gritos, chamas, fulgor de armas e o vulto da mulher mais bela do mundo.
O homem ia no lugar de alguém. Alguém que numa tenda à beira-mar chorava.
Hati ouviu os gritos do homem e soube que chorava a morte do mais que amigo que tomara seu lugar.
Nada nem ninguém o substituiria.
Nenhuma mulher, glória ou butim.
Vingança alguma, por mais infame, apaziguaria a dor daquela perda.
Tudo era vão sem aquele ombro contra seu ombro.
Hati despertou com frio sob o sol do meio-dia. A saudade como um punhal. Sentia falta de alguém que não conhecia, alguém proibido, alguém que talvez não reconhecesse. Alguém que sempre estivera ao seu lado, por quem morreria. Esse era o seu segundo sonho."
e
"Então o elefante branco barriu e levou Leila para um passeio, um passeio grande, um passeio pequeno, até a próxima esquina, a próxima vida, longe muito longe mas bem dentro, aqui, onde o tempo dá volta, ali...
E, assim passeando, assim se aproximando, iam se declarando, dizendo incansavelmente para o outro na estranha língua dos amantes: cobra montanha borboleta nariz sereia tapeçaria torre banho de rio roda-gigante távola redonda unicórnio chuva vento espada gazela garrafa ao mar proboscídeo geléia de morango rocamadour caminho vinho vício início você você você você..."
REFERÊNCIA:
ALPHEN, Pauline. A odalisca e o elefante. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
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