O CONTADOR DE HISTÓRIAS NO ORIENTE
(Humberto de Campos)
--Antes da revolução que vem sublevando a Ásia e que subdividiu o antigo império Otomano, não havia aldeia que não possuísse o seu contador de lendas, que correspondia aos nossos cantadores sertanejos, com a diferença, apenas, de ter aquele um campo mais vasto, consubstanciado numa tradição mais rica, e de gosto mais puro. Cidades havia em que esses rapsodos se reuniam, formando associações de classe, nas quais eram contratados para festas e estabelecimentos de diversões. Cairo, Damasco, Smirna, Constantinopla, possuíam corporações desse gênero, dirigidas por um deles, de maior autoridade, o qual tinha o título de “cheik elmedah”, que significa “chefe dos contadores de cafés”. É um espetáculo curioso – escrevia Hammer, há oitenta anos, - é um espetáculo curioso acompanhar as impressões que as histórias produzem na alma ardente ou apaixonada dos árabes... Conforme a palavra cadenciada do narrador, os ouvintes se agitam ou se acalmam. À cólera violenta sucedem os sentimentos mais ternos; os risos estridentes são, não raro, seguidos de prantos e lamentações. Se o herói do conto é ameaçado de perigo iminente, os ouvintes exclamam, em coro: “Lá, lá, lá, estagfer Allah”. (“Não, não, não, Deus não consentirá!”). Quando um bandido dissimulado ou um amigo desleal prepara uma de suas ciladas, surge, logo, de todos os lados, a imprecação: “Que Cheitã (o Demônio) castigue o traidor!”. Se o herói do conto é um bravo e tomba em combate seguem-se as expressões com que são homenageados os mortos: “Que Deus o receba na sua misericórdia! Que Deus o tenha em santa paz!” E se o narrador fala de uma mulher formosa, o auditório exalta-se como se a tivesse diante dos olhos: “Glória a Deus que criou a mulher!” “Exaltado seja o Altíssimo que criou a Beleza e a Mulher!”
-- Já no Século XX, Mardrus, francês de Constantinopla, que se criara entre árabes, externava essa mesma impressão. “Todo artista que viajou o Oriente, escrever este, no seu estilo das “Mil e Uma Noites”; - todo artista que viajou o Oriente e tomou lugar nos bancos calados dos adoráveis cafés populares das verdadeiras cidades muçulmanas e árabes: no velho Cairo, de ruas cheias de sombras e permanentemente frescas: em Damasco, em Sana, do Iêmen, em Bagdá ou Mascate; todo aquele que dormiu na esteira imaculada do beduíno de Palmira, ou partiu o pão e saboreou o sal fraternalmente na solidão gloriosa do Deserto com Ibn-Rachid, o suntuoso, o tipo inconfundível do árabe autêntico ou, ainda, se deteve a escutar uma palestra de simplicidade antiga do puro descendente do profeta, o xerife Hussein-bem-Ali-Bem-Aun, Emir de Meca, pôde notar, com certeza, a expressão das pitorescas fisionomias reunidas. Um sentimento único domina toda a assitência; uma hilariedade louca. Ela flameja com vitais estalidos ante as descrições do narrador público, que no centro do café ou da praça gesticula, move-se, passeia ou brinca, para dar maior expressão à narrativa no meio dos espectadores risonhos... E apodera-se de vós outros a geral embriaguez suscitada pelas palavras ou pelos sons imitativos, e vós sentis como se fosseis navegantes aéreos na frescura da noite”. E Mardrus conclui: “O árabe não é mais que um instintivo; mas um instintivo apurado, exquisito*. Ama a linha pura, e a adivinha com a sua imaginação, quando irreal. E sonha.... sonha...”
-- O árabe vive, assim, a vida da sua imaginação. Para ele, os heróis das suas narrativas são reais e palpáveis. E essa facilidade em confundir a realidade com a cnocepção dos sentidos é que explica o surto prodigioso do islamismo no dia em que um homem, aproveitando o poder sincrético dessas iamginações ardentes, as pôs em ação para levar a efeito uma formidável obra religiosa e política.”
(Do livro “Mil Histórias sem Fim...” de Malba Tahan – Trecho do prefácio).
Extraí essa citação – e essa referência acima – de “A arte de ler e contar histórias”, também de Malba Tahan. Editora Conquista. 1957. Páginas 81-83.
*OBS: no original, “exquisito” mesmo, com X. fiquem em dúvida se é o mesmo “esquisito” que conheço.
Essa afirmação, ali no fim, de que "facilidade [do povo árabe] em confundir a realidade com a concepção dos sentidos", ou seja, uma ingenuidade, influencia assim o curso de sua História (ascensão de Maomé... e nos dias de hoje, as disputas religiosas) rende uma boa discussão. Mas a intenção dessa postagem é outra: sentir esse modo apaixonado dos árabes, que creem nos seus heróis como seres palpáveis. Palpáveis através da palavra. Não dá vontade de estar lá?
Oi, Eduardo!
ResponderExcluirEsse exquisito esquisito quer dizer raro, requintado, muito especial mesmo. Como a atmosfera que se cria quando um contador consegue 'fisgar' os seus ouvintes, mesmo aqui em terras tropicais e cristãs.
Beijo.
Ahhhh, legal!
ResponderExcluirObrigado, cris! :)