domingo, 26 de setembro de 2010

Os árabes e as histórias

O CONTADOR DE HISTÓRIAS NO ORIENTE
(Humberto de Campos)
--Antes da revolução que vem sublevando a Ásia e que subdividiu o antigo império Otomano, não havia aldeia que não possuísse o seu contador de lendas, que correspondia aos nossos cantadores sertanejos, com a diferença, apenas, de ter aquele um campo mais vasto, consubstanciado numa tradição mais rica, e de gosto mais puro. Cidades havia em que esses rapsodos se reuniam, formando associações de classe, nas quais eram contratados para festas e estabelecimentos de diversões. Cairo, Damasco, Smirna, Constantinopla, possuíam corporações desse gênero, dirigidas por um deles, de maior autoridade, o qual tinha o título de “cheik elmedah”, que significa “chefe dos contadores de cafés”. É um espetáculo curioso – escrevia Hammer, há oitenta anos, - é um espetáculo curioso acompanhar as impressões que as histórias produzem na alma ardente ou apaixonada dos árabes... Conforme a palavra cadenciada do narrador, os ouvintes se agitam ou se acalmam. À cólera violenta sucedem os sentimentos mais ternos; os risos estridentes são, não raro, seguidos de prantos e lamentações. Se o herói do conto é ameaçado de perigo iminente, os ouvintes exclamam, em coro: “Lá, lá, lá, estagfer Allah”. (“Não, não, não, Deus não consentirá!”). Quando um bandido dissimulado ou um amigo desleal prepara uma de suas ciladas, surge, logo, de todos os lados, a imprecação: “Que Cheitã (o Demônio) castigue o traidor!”. Se o herói do conto é um bravo e tomba em combate seguem-se as expressões com que são homenageados os mortos: “Que Deus o receba na sua misericórdia! Que Deus o tenha em santa paz!” E se o narrador fala de uma mulher formosa, o auditório exalta-se como se a tivesse diante dos olhos: “Glória a Deus que criou a mulher!” “Exaltado seja o Altíssimo que criou a Beleza e a Mulher!”
-- Já no Século XX, Mardrus, francês de Constantinopla, que se criara entre árabes, externava essa mesma impressão. “Todo artista que viajou o Oriente, escrever este, no seu estilo das “Mil e Uma Noites”; - todo artista que viajou o Oriente e tomou lugar nos bancos calados dos adoráveis cafés populares das verdadeiras cidades muçulmanas e árabes: no velho Cairo, de ruas cheias de sombras e permanentemente frescas: em Damasco, em Sana, do Iêmen, em Bagdá ou Mascate; todo aquele que dormiu na esteira imaculada do beduíno de Palmira, ou partiu o pão e saboreou o sal fraternalmente na solidão gloriosa do Deserto com Ibn-Rachid, o suntuoso, o tipo inconfundível do árabe autêntico ou, ainda, se deteve a escutar uma palestra de simplicidade antiga do puro descendente do profeta, o xerife Hussein-bem-Ali-Bem-Aun, Emir de Meca, pôde notar, com certeza, a expressão das pitorescas fisionomias reunidas. Um sentimento único domina toda a assitência; uma hilariedade louca. Ela flameja com vitais estalidos ante as descrições do narrador público, que no centro do café ou da praça gesticula, move-se, passeia ou brinca, para dar maior expressão à narrativa no meio dos espectadores risonhos... E apodera-se de vós outros a geral embriaguez suscitada pelas palavras ou pelos sons imitativos, e vós sentis como se fosseis navegantes aéreos na frescura da noite”. E Mardrus conclui: “O árabe não é mais que um instintivo; mas um instintivo apurado, exquisito*. Ama a linha pura, e a adivinha com a sua imaginação, quando irreal. E sonha.... sonha...”
-- O árabe vive, assim, a vida da sua imaginação. Para ele, os heróis das suas narrativas são reais e palpáveis. E essa facilidade em confundir a realidade com a cnocepção dos sentidos é que explica o surto prodigioso do islamismo no dia em que um homem, aproveitando o poder sincrético dessas iamginações ardentes, as pôs em ação para levar a efeito uma formidável obra religiosa e política.”

(Do livro “Mil Histórias sem Fim...” de Malba Tahan – Trecho do prefácio).


Extraí essa citação – e essa referência acima – de “A arte de ler e contar histórias”, também de Malba Tahan. Editora Conquista. 1957. Páginas 81-83.

*OBS: no original, “exquisito” mesmo, com X. fiquem em dúvida se é o mesmo “esquisito” que conheço.

Essa afirmação, ali no fim, de que "facilidade [do povo árabe] em confundir a realidade com a concepção dos sentidos", ou seja, uma ingenuidade, influencia assim o curso de sua História (ascensão de Maomé... e nos dias de hoje, as disputas religiosas) rende uma boa discussão. Mas a intenção dessa postagem é outra: sentir esse modo apaixonado dos árabes, que creem nos seus heróis como seres palpáveis. Palpáveis através da palavra. Não dá vontade de estar lá?

2 comentários:

  1. Oi, Eduardo!

    Esse exquisito esquisito quer dizer raro, requintado, muito especial mesmo. Como a atmosfera que se cria quando um contador consegue 'fisgar' os seus ouvintes, mesmo aqui em terras tropicais e cristãs.

    Beijo.

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