sábado, 11 de setembro de 2010

O coração de Corali é o nosso coração


Hoje vim aqui para o blog pensando em escrever sobre um certo livro que ando lendo. Mas vai ficar pra outra hora, pois meu coração quer falar de outra leitura. Um livro infantojuvenil (só para efeito de ficha catolográfica né!) que conheci ano passado e pelo qual me apaixonei; virou favorito. É esse "O coração de Corali" da foto, escrito por Eliane Ganem e ilustrado por Elvira Vigna. Esta é uma parceria e tanto. Aliás, eu acho que as duas não tem o reconhecimento que merecem, porque são baita autoras e quase não ouço falar sobre suas obras. Pra quem não sabe, a Elvira Vigna além de ser ilustradora, é também romancista e autora de livros infantojuvenis. É dela a série de livros do monstro Asdrúbal, que é uma das coisas mais engraçadas da literatura infantojuvenil brasileira.
Mas deixa eu falar do livro. Ele começa assim: "O coração de Corali é tão grande que é capaz de caber um caminhão." Corali é uma menina que em seu coração reserva um pedaço para cada um: para o pai, a mãe, para os avós, para o Sapoti, seu cachorro vira-lata. Mas logo o leitor é avisado que essa menina - que carrega o coração em seu nome - tem um problema: ela tem um buraco no peito. E esse buraco faz surgir um enorme espaço dentro do coração. Um espaço fundo, que traz agonia por não se preencher. Essa inquietação de Corali preocupa a família. Todos se reúnem, e cada um dá um palpite para resolver o caso. Porque, a princípio, este é um problema que só Corali tem. Mas nenhuma sugestão dá certo: o problema de Corali não se resolveu com mais amigos, nem com a chegada de outro irmãozinho, nem com nada. E ninguém deixou Corali explicar o que sentia. Ante a ineficácia das sugestões adultas, pontua a narradora: "Gente grande, às vezes, acha que gente pequena não tem opinião." Qual seria o problema do coração de Corali?
Desde a capa até a última página, o livro conta com essas ilustrações provocantes de Vigna. Na capa, uma menina sem rosto, sem traços. Uma menina-buraco. E é assim com todos os personagens ao longo do livro. Ninguém tem face, apenas os contornos e o vazio branco, branco. Com seus traços geniais, Vigna quer lembrar que cada um tem seu buraco no coração, seja adulto, criança, velho ou cãozinho. Não importa a quantidade de traços físicos e psicológicos que nos diferenciam: o buraco está sempre lá. Eliminando essas diferenças, Vigna faz, dos homens, um só coração.
Mas naquele meio de adultos perdidos, há a tia gorda, que fica cismando sobre o buraco de menina. E "ficava olhando Corali com um olhar compriiiido, como se dissesse tanta confusão por causa de um buraco vazio no peito".
Um dia, a tia gorda aparece sozinha na casa de Corali. Enquanto a mãe dela dorme, elas começam a conversar. A tia gorda pergunta "Como vai o buraco?" e vai perguntando, perguntando várias coisas sobre o buraco, e aos poucos Corali vai se revelando: "é grande, mede uns cinco metros, não é feio nem bonito, é escuro de meter medo, incomoda quando alguém se importa com ele, aumenta em dia de chuva, continua seco quando eu tomo banho, quando eu tô alegre ele quase some; e respondeu mais de meia hora". A tia gorda, então, tira dois chocolates da bolsa, oferece um a Corali e revela: "este papo me deixou triste [...] Sabe! Você tem um buraco no coração igual ao meu"". Uma descoberta e tanto pra menina que achava que o buraco era um problema que só ela tinha. E assim a tia gorda vai falando sobre o vazio dela. Esse buraco que tem tanto nome: "Cada nome estranho, comprido. Eu prefiro chamar de buraco mesmo", diz a tia. E a tia também conta sobre os vários jeitos que as pessoas encontram para preencher o buraco: há quem fume, há quem trabalhe muito, mais do que precisa; há quem coma chocolate. Cada um com seu jeito de tapar o que é intapável. Pois esse buraco não some, está sempre ali. O que podemos é diminuí-lo.
Após essa conversa tão doce, de amor e bombons, vão as duas, Corali e tia gorda, ao cinema. Pra curtir a vida. Pra ser feliz e diminuir ainda mais aquele buraquinho. Eu queria botar a frase final aqui, pra dizer mais uma vez que adoro esse livro. Mas não devo; chega de botar trechos. Quero é convidá-los a lerem Corali e curtirem por conta própria essa história.
Há tema mais humano que esse?  É um livro que, em suas poucas páginas e com linguagem simples, diz muito. É graças a autoras como Eliane e Vigna que a literatura infantojuvenil mostra-se forte, firme, com a temática sempre pegada à nossa condição humana, e não como sistema menor, onde historinhas fúteis são contadas. Um livro que de forma muito doce motiva a criança, seja lá que idade tenha, 8 ou 30, 23 ou 89 anos, a pensar sobre o que sente, e a refletir sobre a forma com que estamos todos unidos por essa condição comum, inerente ao ato de existir.
Porque eu também tenho um buraco no coração. Você também. Eu tenho um desse Tamanho! E se é verdade - como disse a tia gorda - que cada um tem um jeito de preenchê-lo, sei bem quais são os meus três segredos: chocolate, balas de goma... e ler livros assim, tão especiais, como este "Coração de Corali".

7 comentários:

  1. genial, parece-me. gostei muito de teu escrito sobre o livro! uma entrega de leitor mesmo. ótemo!

    abração.

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  2. o meu se chama uuu e não tem tamanho; é um lugar para onde posso ir quando me canso de carregá-lo...

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  3. obrigada pelos bons serviços de sinalização nesse bairro populoso e labiríntico que é a literatura para crianças!

    você tem razão quando diz que as duas autoras não recebem toda a atenção que merecem.

    da eliane ganem li 'uma ideia sem tamanho' e gostei muito; 'coisas de menino' e 'o outro lado do tabuleiro' estão na lista de leituras urgentes...

    já a elvira vigna é parcialmente responsável pelo meu caso de amor com o Vítor, personagem d'O sofá estampado' da Lygia Bojunga, que li numa edição ilustrada e diagramada por ela; virou um dos meus favoritos de todos os tempos...

    será que se encontra o 'coração de corali' num sebo?

    bj.

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  4. [e agora um comentário menos pessoal e mais informativo]

    edu: se eu fosse psicanalista, poderia dizer que essa falta insuperável é nosso traço essencial, é aquilo que nos impulsiona na direção do outro e nos joga nos braços do mundo...

    ... ou para fora de um egocentrismo sem passado nem futuro e, por isso mesmo, estável e seguro.

    essa falta seria, em última instância, o que torna possível o amor e a cultura.

    só isso.

    outro bj.

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  5. obrigado aos dois pelas visitas!

    cris, nunca pensei que esse buraco pudesse ter nome. vou passar a olhar para o meu com mais carinho! ^^

    e sua fala sobre a "falta" que há no peito e o modo como ela nos dá impulso para criar... e - sobretudo viver, amar - tem todo o meu assentimento. que bonito isso!

    bjo

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  6. Meu primeiro livro, e a primeira vez que eu tive uma tristeza adulta !!!

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  7. Ao ler esse livro que mistura texto com ilustrações, me perguntei por que ele tinha como catalogação Infanto-Juvenil já que falava de um tema tão, digamos, adulto: o grande buraco existencial que existe dentro de todos nós.

    Mas, depois, refleti e vi que sim ele é feito para crianças também, e isso torna ele ainda mais primoroso. Normalmente temos a ideia, eu acho ilusão, que crianças são completamente felizes só por serem crianças, por poderem brincar livremente, não terem as tais preocupações de adultos, e se vemos uma criança emburrada podemos logo dizer: "deixa de besteira pirralho, que você não tem nem com o que se preocupar".

    Contudo, criança também e ser humano, também senti, sofre, pensa, refleti. Elas podem muito bem sentir um vazio que não sabem o que é, e o legal dessa obra é que ela não busca minar esse vazio, dizer que é besteira, que não se pode ter. Indo ao contrário de muitas obras infantis, ela faz com que a criança (seja em que idade for) reflita sobre esse vazio, mostrando que adultos também podem tê-lo e que é preciso saber lidar com ele vivendo e se divertindo, não deixando que o buraco dentro de si nos arraste para o nada.

    Um livro curto, sem grandes exageros imagéticos, mas que fala muito. Recomendadíssimo.

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